O seminário Memória e futuro – 200 anos da Independência do Brasil acontece durante esta semana – dias 16 a 20 de maio – e é composto por mesas de debates abordando temas como perspectivas historiográficas, culturas políticas e formas de estado nacional. Entretanto, de acordo com levantamento da Alma Preta Jornalismo, baseado em heteroidentificação, das 32 pessoas divulgadas nas mesas do evento, há apenas uma pessoa negra e nenhuma indígena.
O evento internacional é promovido pelo Ministério das Relações Exteriores, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), e a Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), com o apoio da Academia Portuguesa da História. Na programação divulgada, são disponibilizadas 10 mesas temáticas sobre assuntos relacionados aos dois séculos de história do Brasil.
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Fontes ouvidas pela reportagem da área de relações internacionais, e que preferiram manter seus nomes em anonimato, denunciam que, apesar de a iniciativa ser interessante e promover uma reflexão sobre memória e futuro, falta, na programação do evento, representatividade tanto de pessoas quanto de temas e reflexões que expressem os dilemas, conflitos e contradições da sociedade já no seu nascedouro.
Também pontuam que considerando a sociedade multi-étnica, cultural e racial existente, “a ausência ou sub-representatividade de intelectuais negros e indígenas que pudessem trazer a perspectiva desses grupos no momento histórico discutido parece o sintoma de um país que apaga parte de suas memórias e que não tem um planejamento de futuro que seja capaz de refletir sobre a diversidade, as violências e contradições da sociedade brasileira”.
Nesse mesmo entendimento, a historiadora e psicanalista Mariléa de Almeida comenta que realizar um seminário internacional sobre os 200 anos da Independência, em que intelectuais negros ou negras e indígenas estão sub-representados ou ausentes, expressa que as organizações responsáveis pelo evento estão alheias as transformações que a sociedade brasileira tem demandado.
“Conforme aprendemos com Lélia Gonzalez, o racismo faz parte da neurose cultural brasileira. É ainda mais sintomático quando verificamos que o evento pretende discutir memória e futuro”, destaca a historiadora.
A professora de História Lucia Helena Xavier, também mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná, ressalta que existem muitos estudos e pesquisadores negros e indígenas que trazem outras perspectivas sobre a história brasileira para além da escravização.
“O apagamento dessas populações representa um silenciamento de outras perspectivas e possibilidades de se entender os processos históricos que constituíram a sociedade brasileira”, comenta a professora.
Já o historiador Delton Aparecido Felipe, diretor de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), comenta que é fundamental ressaltar que é inquestionável a qualidade dos debatedores e palestrantes do evento, muitos com renome internacional e com uma produção relevante para a historiografia brasileira.
Entretanto, o que se questiona é a ausência de representatividade em um seminário que se propõe ser internacional, considerando que o processo de construção da identidade nacional brasileira foi feito por meio de assimetrias de poder em que as populações negras e os povos indígenas até hoje lidam com as consequências das formas da construção da nação brasileira.
“Quando o seminário faz essa composição que nega a representatividade do Brasil na sua formação, tanto dos povos negros como dos povos originários, ou marginaliza essa representação, a gente pode pensar qual é a imagem que o Ministério de Relações Exteriores e o IHGB está querendo passar sobre o Brasil e sobre a sua independência”, destaca o historiador.
O diretor de Relações Internacionais da ABPN também ressalta que a falta de representatividade recai em um descumprimento do que é garantido pelo Estatuto da Igualdade Racial, quando aborda a necessidade de representatividade da diversidade étnica nas esferas pública e privada.
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Posicionamento da comissão organizadora do evento
A Alma Preta Jornalismo questionou o Ministério das Relações Exteriores, o IHGB e a Funag sobre a pouca representatividade negra e a ausência de debatedores indígenas nas mesas de discussão. Em resposta, o IHGB confirmou a participação de uma intelectual negra no seminário, a professora Mônica Lima, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A professora compôs a sessão intitulada “Conexões Atlânticas”, acompanhada dos professores José Maia Bezerra Neto, da Universidade Federal do Pará (UFPA) e Crislayne Alfagali, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) em discussão dedicada a pensar a história das relações Brasil-África e da escravidão no Brasil no contexto da Independência.
Também pontuam que no âmbito do projeto Acervo Digital Angola-Brasil, do IHGB e que será abordado no evento, foi realizado o inventário da coleção de documentos de África existentes no Arquivo do IHGB e que reuniu 108 códices digitalizados do Arquivo Nacional de Angola, num acordo de cooperação técnica e que se tornou um centro de referência no Brasil para o estudo das conexões atlânticas entre Brasil e Angola.
“O estudo da história e cultura afro-brasileira e africana tem sido uma pauta valorizada em tempos recentes no IHGB, que conta em seus quadros sociais com autores conhecidos nesse campo, como os historiadores Alberto da Costa e Silva, Eduardo Silva e Nei Lopes, que honram a tradição da casa em manter em seus quadros intelectuais negros de várias gerações, tendo o antigo sócio André Rebouças como inspiração”, responde o Instituto.
A comissão organizadora do evento também confirma que o seminário em realização não conta com a participação de pesquisadores indígenas e nem tem na programação prevista uma sessão específica sobre a questão indígena no tempo da Independência, ainda que esta será mencionada.
“Considerando a atualidade e o desenvolvimento da pesquisa acadêmica sobre a história indígena e levando em conta o compromisso do IHGB em acolher as inovações da historiografia nacional, a instituição acompanha com interesse a produção acadêmica no campo e a carreira de profissionais da história indígenas que valorizam a historiografia brasileira”, finalizam.
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