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Racismo e desigualdade social dificultam a entrada de diplomatas negros no Itamaraty

Diplomatas negros relatam suas experiências em um dos concursos mais concorridos do país; as bolsas fornecidas e a lei de cotas tornam-se as ferramentas mais importantes para aumentar a diversidade do Ministério das Relações Exteriores

Foto do Palácio do Itamaraty, localizado em Brasília.

Foto: Imagem: Jonas Pereira/Agência Senado

16 de maio de 2022

O Ministério das Relações Exteriores (MRE) não tem informações oficiais sobre o perfil racial de seus diplomatas. Entretanto, o que é possível constatar sobre a representatividade do órgão por meio de informações fornecidas pelo próprio Itamaraty e por servidores em exercício é a pouca diversidade racial presente no Ministério, resultado de um processo de entrada muito concorrido em meio a um país com grandes desigualdades sociais e educacionais.

De acordo com informações fornecidas à Alma Preta Jornalismo por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), encontram-se ativos atualmente 1545 diplomatas. Entretanto, segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2020, apenas 11,6% desses servidores se declaravam negros, com 57,1% brancos e 29,5% sem raça/cor identificada.

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O Instituto Rio Branco (IRBr), vinculado ao MRE e escola diplomática do Brasil, responsável pela seleção, formação e aperfeiçoamento dos diplomatas do Itamaraty, foi criado em 1945. Apenas em 1961, foi nomeado o primeiro embaixador negro brasileiro em outro país, o jornalista e escritor sergipano Raymundo Souza Dantas. Além disso, só em 2010, o Itamaraty teve seu primeiro embaixador de carreira negro.

Na busca por aumentar a diversidade nos quadros do MRE, no contexto também de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil – como na Conferência Mundial contra o Racismo, em Durban, na África do Sul, em 2001 -, é instituído em 2002 o Programa de Ação Afirmativa (PAA) – Bolsa-Prêmio de Vocação para a Diplomacia, organizado pelo Instituto Rio Branco.

O Programa de Ação Afirmativa do IRBr permite a concessão de bolsas para que os candidatos negros consigam custear os estudos e a preparação para o Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD), processo seletivo para ingresso na carreira.

De acordo com dados fornecidos por LAI, de 2002 a 2022, 433 pessoas foram beneficiadas com bolsas de estudo por intermédio do PAA. Até 2020, 46 desses bolsistas foram aprovados no CACD.

Além disso, a partir de 2015, em conformidade com a Lei 12.990/2014, o órgão passou a reservar 20% das vagas para candidatos negros. Desde a implementação dessa lei, de 2015 a 2021, 32 vagas do CACD foram preenchidas por negros e quatro tiveram nota suficiente para serem admitidas pela ampla concorrência.

Leia mais: Dos 90 diplomatas brasileiros em África, apenas um é negro

Desigualdades brasileiras dificultam entrada na carreira diplomática

Jackson Lima

Diplomata Jackson Lima | Crédito: Acervo pessoal

O diplomata baiano Jackson Lima, 52, hoje primeiro-secretário do Itamaraty, graduou-se em Letras Vernáculas pela Universidade Católica do Salvador em 1991 mirando o sonho de seguir carreira diplomática, mas precisou esperar quase 20 anos para concretizar o desejo.

“Fiz faculdade achando que dava pra ser diplomata. Vi que quando eu acabei a faculdade, não tinha a menor condição, porque não tinha dinheiro e estrutura. Tinha que trabalhar. Só vou conseguir tirar esse sonho da gaveta 20 anos depois, quando eu encontro o Programa de Ação Afirmativa. Eu nunca teria sido diplomata se não tivesse o PAA”, relata Lima, que já exerceu atividades como ajudante de pedreiro e camelô durante sua trajetória.

O Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata é um dos mais concorridos do Brasil, com três fases constituídas de provas eliminatórias. Em 2019, foram 6.411 inscritos para 20 vagas disponíveis. A bolsa oferecida pelo IRBr, com um valor total atual de R$ 30 mil, contribui com os custos de preparação para o processo seletivo.

Em 2008, na terceira tentativa no concurso, Jackson Lima entrou no Itamaraty. Ele relata que a ideia de desistir passava por sua cabeça todo dia durante os anos de preparação. Só nos últimos 6 meses, conseguiu se dedicar inteiramente aos estudos .

“[A ideia de] desistir vinha todo dia, porque as estatísticas estavam todas contra mim. A resiliência vem, no meu caso, da necessidade”, relata Jackson, que, nos últimos meses de preparação, tambpem chegou a morar de favor no Rio de Janeiro.

As dificuldades de acesso à carreira diplomática se repetem entre outras pessoas negras, considerando as desigualdades sociais brasileiras que se detém com mais força sobre a população preta e parda.

“A dificuldade vem do ponto de vista financeiro, para se manter durante o período de preparação, ter uma estrutura familiar que vai te bancar durante esse período, ter uma rede de proteção, porque, ao ficar estudando para esse concurso, a grande maioria das pessoas fica fora do mercado de trabalho, o que envolve você abdicar de uma carreira profissional”, relata o também diplomata Ernesto Mané.

Ernesto Mané

Diplomata Ernesto Mané | Crédito: Divulgação/ Egan Jimenez

Diplomata pelo Itamaraty e também cientista nuclear, o paraibano Ernesto Mané, 39, conta que quando começou a estudar para a carreira diplomática já tinha uma trajetória de vida acadêmica na física e experiências que se diferenciavam, com anos morando fora do país e boa proficiência em línguas como inglês, espanhol e francês. Entretanto, a bolsa do PAA que recebeu foi decisiva para ajudá-lo a arcar com os custos da preparação durante dois anos, mesmo que ainda precisasse usar todas as economias para bancar o restante dos custos.

“O risco e custo são muito altos. Isso se torna mais difícil para as pessoas negras que têm um histórico familiar bem menos favorável, de renda e de oportunidades. O ponto de partida é bem diferente. Quando se fala que o Itamaraty é um concurso de elite, é por conta das condições de entrada. Não se trata só de quem é mais inteligente, é realmente de quem tem fôlego e condições financeiras para poder se preparar”, complementa o diplomata, que entrou no Itamaraty em 2014.

Para as mulheres negras, as dificuldades também podem se somar a uma vida que acumula também a dupla jornada de trabalho. A diplomata Marise Ribeiro Nogueira, 57, foi a primeira bolsista do PAA a ser aprovada no Concurso de Admissão à Carreira Diplomática.

A carioca, formada em medicina, conta que as dificuldades que enfrentou na preparação para a carreira no Itamaraty envolvia uma vida em que já tinha compromissos profissionais como médica, um casamento e duas filhas pequenas.

“Eu já tinha uma rotina com todos os comemorativos que existem na vida de uma mulher. Muitas mulheres e meninas, diante dessa realidade, temem uma certa incompatibilidade entre a carreira diplomática e a vida pessoal como mulher. Recebi várias perguntas sobre o impacto na vida familiar, ou em constituir uma família, sendo mulher e diplomata”, explica Marise.

Marise Ribeiro Nogueira

Diplomata Marise Ribeiro Nogueira | Crédito: Acervo pessoal

“É verdade que é difícil, porque a carreira implica em algumas exigências diferentes das que eu tinha como médica. A começar pelas mudanças frequentes de lugar, exigindo que o cônjuge adapte suas atividades profissionais às especificidades da vida diplomática”, também complementa Nogueira.

Importância de maior representatividade na carreira diplomática

Os três diplomatas que conversaram com a Alma Preta Jornalismo atualmente ocupam cargos na embaixada brasileira em Washington, nos Estados Unidos. É a primeira vez que três diplomatas de carreira negros ocupam um dos postos mais importante da diplomacia brasileira.

Os três relataram nunca terem passado por episódios de racismo institucional dentro do Itamaraty, mas, assim como acontecia antes em suas trajetórias de vida, a discriminação de alguma forma ainda aparece em suas vidas. Marise Nogueira, que é conselheira em Direitos Humanos e Cooperação em Washington, conta que já vivenciou episódios de não ser reconhecida como diplomata em eventos ou ser a única em que foi solicitada revista na bolsa.

“O lugar reservado à mulher, e em particular à mulher negra, que está na base da pirâmide social, não é o lugar do conhecimento acadêmico, do conhecimento construído e reconhecido pela excelência, como é o caso da diplomacia brasileira. Uma mulher negra diplomata contraria os estereótipos de mulheres negras”, explica.

O primeiro-secretário Jackson Lima, em um de seus mestrados, buscou comparar os métodos utilizados pelo Brasil e os Estados Unidos para ampliar a representatividade racial na carreira diplomática. Ele percebeu que a política brasileira de democracia racial fez com que o país tivesse uma discriminação velada, com uma menor representatividade negra na diplomacia considerando a representação na população, que tem uma maioria de 56% de pretos e pardos.

“Se você tem uma política que traz à tona a questão racial e tem uma disputa não velada, a possibilidade de conscientização e de conflitos e de acordos é maior, por isso que a gente precisa trazer a discussão racial para o Brasil à luz do dia. A gente precisa produzir dados para que essa discussão apareça”, explica Lima.

“A gente teve aí 350 anos de escravidão no Brasil, imposta pelo estado brasileiro. Tem todo um arcabouço do papel do estado brasileiro em montar essa estrutura legal de como é que vai funcionar e qual é a condição do negro no Brasil. Agora mais do que justo que esse próprio estado e essa própria sociedade repare tudo isso”, defende o diplomata.

Além disso, Jackson pontua que ocupar espaços de poder traz uma representatividade e uma contribuição na formação da diplomacia brasileira ao romper com estereótipos e contribuir com novas posturas e maneiras de ver o mundo. “A gente tem que continuar promovendo isso de uma maneira muito forte, porque eu diria que nem começamos o trabalho”, destaca.

Ernesto Mané, secretário no setor de defesa e segurança em Washington, ressalta que o Programa de Ação Afirmativa é essencial e definitivo para aumentar a representatividade de pessoas negras no serviço exterior brasilerio.

“Nós estamos buscando implementar políticas para aumentar esses números, mas isso demonstra o quanto a gente andou, mas também o quanto ainda temos para andar”, destaca ele, também reconhecido como uma das 100 pessoas negras mais influentes do mundo na área de política e governança na lista Most Influential People of Africa Descent.

A conselheira Marise Nogueira relata já ter participado de bancas de heteroavaliação de candidatos e o que ficou mais consolidado foi a impressão de que é preciso buscar os talentos negros para a diplomacia em sua juventude.

“Um dos maiores gargalos no ingresso à carreira diplomática é o conhecimento de línguas estrangeiras, cujo aperfeiçoamento precisa de tempo. Por isso é fundamental superar a evasão escolar de jovens negros, de maneira que eles e elas concluam o Ensino Médio. O passo seguinte seria maior divulgação da carreira diplomática nas universidades, onde hoje, felizmente, aumentou significativamente a presença negra”, finaliza a conselheira.

Posicionamento do Itamaraty

A Alma Preta Jornalismo questionou o Ministério das Relações Exteriores sobre a ausência de dados oficiais sobre o perfil racial dos diplomatas em exercício e sobre o controle que o órgão faz para saber como as políticas de bolsas e de cotas para pessoas negras estão funcionando.

Em resposta, o Itamaraty explicou que o PAA, que completa 20 anos em 2022, “é iniciativa pioneira do Itamaraty e tem por objetivo ampliar as condições de ingresso de brasileiros negros na carreira de diplomata, de forma a fomentar maior diversidade do Serviço Exterior Brasileiro”.

Também relatam que o Itamaraty, ao reconhecer a necessidade de esforços adicionais com vistas a ampliar a diversidade na carreira diplomática, para além do PAA, adotou reserva de vagas na Primeira Fase do CACD de 2011 a 2014.

“O edital do CACD de 2015 foi dos primeiros concursos da administração pública federal a prever, em conformidade com a Lei nº 12.990/2014, a reserva de 20% das vagas oferecidas a candidatos negros em todas as fases do concurso. Desde a implementação da lei de cotas no Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD), todas as vagas disponíveis para candidatos negros foram preenchidas”, explicam.

Leia também: Entenda a importância de uma embaixada para aprofundar as relações entre o Brasil e os países africanos

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