As lesões corporais são o crime mais frequentemente cometido por vigilantes e outros seguranças privados na cidade de São Paulo. A conclusão é de um levantamento inédito feito pela Alma Preta e pelo Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança (LEGS) da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
O estudo abre um especial de reportagens sobre as diversas facetas da segurança privada na cidade de São Paulo. Durante esta semana, a Alma Preta publicará diariamente histórias representativas da violência envolvendo seguranças particulares no Brasil.
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Os pesquisadores fizeram o levantamento a partir de um pedido de Lei de Acesso à Informação (LAI) para a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP). O laboratório analisou os dados dos boletins de ocorrência que envolvem vigilantes, seguranças e guardas, entre 1 de outubro de 2021 e 31 de outubro de 2022.
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Ao todo, foram analisadas 118 ocorrências registradas no ambiente de trabalho de vigilantes. Dentre elas, foram contabilizados 173 crimes — em cada boletim de ocorrência podem ser registrados um ou mais crimes. As lesões corporais representam 32% dessas “infrações penais”, segundo o jargão técnico.
“Algozes e vítimas”
Na maioria dos casos, os seguranças são autores dessas infrações penais durante o horário de trabalho. Em 44% dos casos, porém, eles figuram tanto como autores quanto como vítimas.
“Essa dupla condição de algoz e vítima se explica pelo baixo poder legal e simbólico dos seguranças”, explica Cléber Lopes, professor de Ciência Política da UEL, que coordena o LEGS e que desenvolveu esta pesquisa.
“Os seguranças não possuem os mesmos poderes dos agentes de segurança pública para impor a lei, logo, tendem a enfrentar mais dificuldades para reestabelecer a ordem dos espaços que policiam”, argumenta.
Além de Lopes, o estudo contou com a colaboração do mestrando João Victor de Almeida, assistente de pesquisa do LEGS-UEL.
Depois das agressões, os crimes mais comuns são as ameaças e outros tipos de crimes à liberdade individual (que violam a liberdade física, psicológica ou moral), com 37 casos. Além disso, foram contabilizados 32 crimes contra a honra, como injúria, calúnia e difamação, e três homicídios.
Transporte coletivo tem mais casos
O transporte coletivo, principalmente estações de trem e metrô, é o local onde ocorre a maior parte das agressões que envolvem seguranças privados (34 casos).
Em seguida, vêm os espaços de comércios e serviços (41 casos). Já os ambientes de lazer, como bares e casas noturnas, estão em terceiro lugar na lista.
A explicação para a maior frequência de crimes no transporte público de São Paulo está no volume de usuários, no tamanho das equipes de segurança nesses ambientes, que costumam trabalhar em grupos, e no perfil da atuação nesses espaços. Mas há outros fatores de análise.
“Está também no fato de que a segurança privada desses espaços realiza um policiamento não apenas preventivo, mas também de confronto. Nos espaços da CPTM [Companhia Paulista de Trens Metropolitanos], por exemplo, uma das missões dos seguranças privados é combater o comércio informal”, analisa Lopes.
Nos supermercados e centros comerciais, a ocorrência mais comum são os “crimes contra a honra”, que estão associados a abordagens de seguranças e a acusações de furto. Já nas casas noturnas e nos bares, os casos mais recorrentes são de agressões físicas.
No levantamento, identificou-se que as ocorrências são mais numerosas às sextas-feiras e sábados. Em relação ao período do dia, a maioria ocorre à tarde e à noite.
Falta de dados raciais
A Alma Preta e o LEGS-UEL decidem fazer esse estudo no contexto de maior divulgação de episódios de violência e racismo em espaços de comércio e entretenimento.
“Casos recentes de violações de direitos civis nesses espaços, como o assassinato no estacionamento do Oxxo que aconteceu em novembro, sugerem que as pessoas que são alvo da segurança privada são, em sua maioria, pobres e negras”, analisa Lopes.
No entanto não é possível quantificar a proporção de pessoas pretas e pardas que foram vítimas desses vigilantes na cidade de São Paulo.
“Primeiramente, porque o levantamento está focado na autoria dos crimes. Ou seja, nas poucas vezes em que o campo raça/cor está preenchido, ele se refere aos seguranças envolvidos, e não às respectivas vítimas”, explica Lopes.
“Além disso, o formato dos boletins de ocorrência dificulta um cruzamento de informações que permita identificar a raça/cor das vítimas desses seguranças”, completa o professor de Ciência Política da UEL.
E, mesmo que essa análise fosse possível, quase 90% dos boletins de ocorrência analisados não têm dados raciais, porque não é obrigatório preenchê-los nos sistemas da SSP-SP.
“A ausência de dados e estudos sistemáticos sobre padrões de abuso cometidos por seguranças particulares cria dificuldades para o monitoramento e controle desses agentes. Assim eles se tornam quase invisíveis à crítica da mídia e à atuação de organizações de direitos humanos e de órgãos públicos”, afirma o relatório.
O relatório destaca os poucos mecanismos de controle para a atividade de seguranças privados, diferentemente do que já existe para a segurança pública. Para ler íntegra, clique no documento abaixo:
Os limites do Estatuto da Segurança Privada
Este estudo é divulgado no contexto do recente Estatuto da Segurança Privada, que foi sancionado pelo presidente Lula em setembro deste ano.
A lei regula parte da atuação das empresas de segurança privada e de transporte de valores e disciplina detalhes da segurança em bancos.
De acordo com a norma, cooperativas e profissionais autônomos não poderão prestar serviços de segurança privada. Assim, a regulamentação do estatuto deve afetar a informalidade desse mercado.
O documento define que os serviços de segurança privada incluem: a vigilância patrimonial; a segurança de eventos em espaços de uso comum; a segurança nos transportes coletivos, exceto aviação; a segurança em unidades de conservação; o transporte de valores; e a escolta de transporte de bens.
Segundo Lopes, da UEL, o estatuto não regula ainda sobre a atividade de segurança privada que se faz em vias públicas. “Precisamos de regulação, porque ela não está só em São Paulo, mas no Brasil inteiro. Mesmo em cidades pequenas onde não há problemas de segurança muito agudos”.
O estatuto ainda precisa ser regulamentado pelo Governo Federal para ser executado.