“Quando falamos sobre o massacre que a Palestina vem sofrendo nas mãos de Israel é fundamental compreender que o povo negro também está sendo massacrado, afinal a colônia muçulmana palestina negra é expressiva, sendo alvo de racismo e violência há anos”. É o que diz o professor e historiador Abdul Magid Mohammed Ali Khaled.
Desde 7 de outubro de 2023, as principais notícias divulgadas no mundo abordam o conflito entre Israel e Palestina, que teve início após um ataque do Hamas à cidade de Ashkelon. O resultado dos ataques israelenses são alarmantes: pelo menos 21.978 palestinos morreram e 56.697 ficaram feridos em Gaza, sendo a maioria mulheres e crianças. Em contrapartida, dados da Organização das Nações Unidas (ONU) apontam que 1.170 israelenses morreram durante os últimos meses de guerra.
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Informações da ONU ainda indicam que muitas famílias negras, que hoje residem na faixa de Gaza, têm origem no Sudão, Gana, Guiné, Mali e Somália, e buscam refúgio em diversos países do mundo para fugir não somente da violência como também do racismo.
O historiador Magid possui familiares residentes na região, mas não tem contato com eles desde o início do conflito. Segundo a Fundação Free Palestine Movement, 20% das vítimas em Gaza são negras. Em entrevista à Alma Preta, Magid afirma já ter perdido pelo menos 11 membros de sua família, todos negros – oriundos da Somália –, durante os ataques israelenses.
No entanto, o apagamento da negritude muçulmana não é um fenômeno novo. O professor Magid Mohammed explica que a expansão do Islã na África teve início no século VII, possivelmente se iniciando no Egito após a morte do profeta Muhammad – ou Maomé. Diversas investidas foram feitas em direção ao Magrebe, com conflitos iniciais entre os muçulmanos, berberes e bizantinos, que gradualmente foram convertidos e desempenharam um papel importante na expansão do islamismo.
“É importante compreender a expansão islâmica no Reino de Gana e suas peculiaridades, depois no Reino de Mali e por fim o Reino de Gaô. Apesar de o islamismo ser erroneamente associado à violência, essa religião conseguiu converter seguidores de maneira pacífica na época, em acampamentos militares em que havia convivência entre crianças, mulheres, esposas e soldados, sem violência direta contra cristãos e judeus”, destaca o professor.
Outro apontamento de Magid é que relações de apoio entre negros brasileiros e palestinos não são de agora, pelo contrário, provém da época do regime militar que assolou o Brasil entre 1964 e 1985, justamente pelo número de adeptos negros à religião islâmica – sejam eles brasileiros ou provenientes do continente africano.
Atualmente, predominam no território da África as religiões abraâmicas: Cristianismo, Islamismo e Judaísmo, crenças de mais de 91% da população. Já as religiões tradicionais são praticadas por 8% da população, segundo a World Christian Encyclopedia.
Islamismo, negritude e periferia
De acordo com César Kaab Abdul Pugnaz, fundador e presidente da Mesquita Sumayyah Bint Khayyat – Centro de Estudos e Divulgação do Islam no Brasil – localizada na periferia de Embu das Artes (SP), não se pode afirmar que a religião islâmica é predominantemente branca, justamente devido aos ensinamentos do Alcorão: livro sagrado dos muçulmanos.
Enquanto a bíblia tem passagens que geraram interpretações controversas sobre a raça e a escravização, no Alcorão a questão da igualdade entre todas as pessoas é enfatizada, segundo ele. Por exemplo, no Alcorão, no versículo 30:22, é mencionado que Deus criou a diversidade entre os seres humanos como um sinal de sua grandeza, não para fins de superioridade ou inferioridade com base na raça.
“O Islam não só não discrimina com base na cor da pele, mas também encoraja a igualdade de todos perante Deus, po exemplo: Bilal ibn Rabah, um etíope negro que se tornou um dos primeiros muçulmanos e o primeiro muezim [que faz o chamado para a oração] na história islâmica, destaca a valiosa contribuição e a igualdade de todas as raças no Islam”, argumenta César.
O Adhan (chamado para oração) é praticado por todos os muçulmanos de forma obrigatória, pois não existe a oração sem o chamado, em todas as mesquitas ao redor do mundo, diz ele.
Nascido em um lar cristão, César Kaab foi inspirado a se converter ao islamismo por meio da bibliografia de Al Hajj Malik al-Shabazz – mais conhecido como Malcolm X – e por influência do hip-hop dos anos 1980, marcado pela influência musical negra e de periferias norte-americanas.
A fundação da Mesquita Sumayyah Bint Khayyat em uma comunidade carente de Embu das Artes foi um passo significativo para levar o islamismo para áreas menos favorecidas, de acordo com César Kaab. Esta ação não apenas reflete o compromisso com a justiça e a inclusão, mas também busca preencher uma lacuna na presença islâmica em regiões desafiadoras, devido à grande falta de conhecimento nessas regiões.
“O nome ‘Sumayyah’ foi escolhido não apenas como homenagem à primeira mártir muçulmana, uma mulher preta, etíope, mas também para destacar a importância da diversidade e da aceitação dentro do Islam, e a importância das mulheres em diversas áreas de atuação religiosa e educacional, por exemplo: a primeira universidade no mundo, foi criada por uma mulher muçulmana”, diz o líder religioso.
Atualmente, a mesquita acolhe e serve a população negra, pobre e periférica da região. Além de orações, o espaço oferece programas educacionais, sociais e de apoio comunitário.
“A Sumayyah Bint Khayyat busca ser um farol de esperança e igualdade, seguindo os princípios inclusivos do Islam e promovendo a unidade, a compaixão e o empoderamento entre todos os seus membros, independentemente de sua origem ou situação socioeconômica”, completa Kaab.
Influência islâmica sempre esteve presente no Brasil, mas sofreu apagamento
A advogada e mestra em Relações Étnicas e Contemporaneidade, Quezia Barreto, diretora de Comunicação e Divulgação da Associação Nacional de Juristas Islâmicos (ANAJI), explica que, historicamente, o Brasil foi construído sob a base do tráfico transatlântico de pessoas africanas escravizadas, o que moldou profundamente as relações raciais no país.
“Vale ressaltar a Revolta dos Malês, uma das maiores revoltas de escravizados no país. Em minha pesquisa de mestrado colhi dados em entrevistas com alguns nigerianos, que a terminologia ‘Malê’, que tem como significado ‘muçulmano’, tem o cunho pejorativo, criado pelos portugueses escravagistas”, detalha.
Segundo ela, a concepção islâmica de independência – sobretudo por meio do conhecimento e da educação –, foi fundamental para o desenvolvimento da revolta, considerada a mais organizada da história negra, e passou também pela criação da Sociedade Protetora dos Desvalidos – SPD, primeiro movimento negro estabelecido no Brasil.
A SPD tinha como atividade principal a luta pela liberdade, mas também a independência de forma plena, já que os libertos tinham garantia de cursos profissionalizantes para que pudessem garantir o seu próprio sustento, havendo portanto uma caixa de colaboração dos que já estavam estabelecidos profissionalmente, segundo ela.
“O que nos lembra a organizações islâmicas de recolhimento do Zakat. Considerada uma forma de caridade obrigatória, a prática é vista como um dos pilares da fé islâmica, ao lado da oração, do jejum no mês de Ramadan, da peregrinação a Makkah [Hajj] e da crença em Allah, altíssimo seja, como Deus único e absoluto”, destaca a advogada.
Quezia Barreto ainda diz que o zakat é geralmente calculado como uma proporção fixa da riqueza de uma pessoa, geralmente 2,5% do valor total dos ativos de um muçulmano após a dedução de dívidas e despesas básicas. Os fundos do zakat são distribuídos entre diferentes categorias de pessoas que têm direito a recebê-lo, conforme prescrito no Alcorão.
“Essas categorias incluem os pobres, os necessitados, os viajantes necessitados, os escravizados libertos, aqueles endividados e os que trabalham para coletar e distribuir o zakat”, elucida.
“Esse é um contexto importante para entendermos o movimento negro, não apenas no Brasil, mas em outros lugares do mundo. Por exemplo, nos EUA, Malcolm X teve muito do seu discurso influenciado pelos conhecimentos islâmicos, sobretudo, após a viagem dele a Makkah para a peregrinação”, relembra a jurista.
Para Quezia Barreto, é fundamental ainda compreender o destaque islâmico negro citado no livro de Ana Maria Gonçalves – “Um defeito de cor” –, sobre a história de Luísa Mahin e a influência dos conhecimentos islâmicos em sua construção, para além da influência dela sobre o filho Luiz Gama, o que também aconteceu na trajetória de Mariguella, “em que sua mãe era baiana, negra e filha livre de escravizados africanos trazidos do Sudão – negros hauçás”.
“Apesar de todo esse conhecimento derivado da sabedoria islâmica, ser negro e muçulmano no Brasil muitas vezes significa desconhecer a própria história em razão do apagamento histórico, que minimizou a luta do povo negro no período de escravização no país, para além da sua contribuição na criação dos monumentos, igrejas, prédios e tudo que foi desenvolvido exclusivamente por escravizados até a época da abolição”, ressalta.
Ramadan e a luta pela libertação da Palestina
O Ramadan é um mês muito importante para os islâmicos, pois representa o período em que o Alcorão foi revelado ao Profeta Muhammad, destaca César Kaab. Em 2024, o Ramadan teve duração de 29 dias, de 11 de março a 10 de abril.
“Através do jejum e da oração durante este mês, buscamos nos purificar espiritualmente e nos aproximar de Deus. Durante o Ramadan, praticamos o jejum diário do nascer ao pôr do sol, aumentando nossas orações e recitação do Alcorão, além de praticarmos a generosidade através de atos de caridade e solidariedade com aqueles em necessidade”, diz.
De acordo com o líder religioso, vivenciar esse mês sabendo do que ocorre na Palestina representa um momento de reflexão e solidariedade.
“A sura Al-Ma’idah 5:32 nos ensina que tirar uma vida é como matar toda a humanidade, e salvar uma vida é como salvar toda a humanidade. Portanto, é nosso dever condenar qualquer injustiça e violência, incluindo a sofrida pelo povo palestino”, enfatiza.
Quezia Barreto argumenta que as pessoas tentam fazer uma definição como que o que acontece no território da Palestina é uma briga entre muçulmanos e judeus, mas afirma que isso não é verdade, pois não é uma briga religiosa: é uma questão política, que precisa ser encarada como tal sem polarização.
“A gente acabou se dividindo muito entre questões de direita e esquerda e aí cada um toma um partido e parece que é time de futebol, mas eu enquanto mulher negra muçulmana, repito a frase de Sueli Carneiro: ‘entre direita e esquerda, continuo preta’. As nossas demandas continuam sendo urgentes e continuam sem ser atendidas”, lamenta.
O professor Magid Mohammed salienta que a Palestina merece ter voz no conflito, para que a situação seja amenizada de forma justa para os povos menos favorecidos, como os imigrantes negros que ali habitam.
“Guerra é quando ambos os lados têm as mesmas condições. O que ocorre é um massacre, difícil de ver, de noticiar, de assistir. Que a paz que tanto pedimos no Ramadan rompa as fronteiras e alcance nossos irmãos palestinos”, finaliza.