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Funcionários da Embraer são demitidos após denunciar racismo, assédio moral e sexual 

Em entrevista à Alma Preta, um dos ex-funcionários da fabricante de aviões relata que ouviu do antigo gestor comentários racistas; procurada pela reportagem, a Embraer afirmou não comentar processos individuais em tramitação na Justiça
Imagem mostra logo da Embraer e uma aeronave fabricada pela empresa.

Imagem mostra logo da Embraer e uma aeronave fabricada pela empresa.

— Sergio Fujiki/Divulgação/Embraer

27 de maio de 2025

Três ex-funcionários negros da Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer) abriram processos contra a fabricante de aviões após serem demitidos. Duas dessas demissões ocorreram após denúncias de casos de racismo, assédio moral e sexual feitas pelos funcionários em uma plataforma interna criada pela empresa para o recebimento de queixas de mau comportamento e discriminação.

Em entrevista à Alma Preta, os funcionários demitidos dizem que, apesar das denúncias na plataforma, a Helpline, a instituição não teria ofertado apoio, acolhimento ou auxílio às vítimas. As denúncias se tornaram processos trabalhistas no Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT-15).

As duas demissões levadas à plataforma da empresa ocorreram sob a alegação de falta de desempenho, após apurações internas das queixas. No terceiro caso, o servidor foi desligado acusado de quebrar protocolos de ética.

As três vítimas ouvidas pela reportagem são negras e mantiveram carreira na empresa por mais de cinco anos. A reportagem também entrou em contato com três testemunhas que atestaram os fatos relatados.

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Os casos e falhas na confidencialidade da política interna de denúncias, relatam as vítimas, causaram aos ex-funcionários quadros de adoecimento mental, além de outras questões de saúde, em meio ao clima de hostilidade e acusações dentro da empresa, incluindo piadas de conotação sexual e comentários racistas.

‘Eu comecei a adoecer’

Em um dos casos, uma das vítimas conta que não teve sua identidade e teor da sua queixa preservados após denunciar sua situação internamente. O clima hostil no ambiente de trabalho teria se intensificado depois da denúncia, que virou alvo de piada entre os colegas do setor, no qual ela era a única pessoa negra.

Além de ter a capacidade e o profissionalismo questionados por um colega, a mulher relata que era alvo de chacota e tratamento humilhante. 

“Meus colegas falavam que para eu parecer uma profissional dependia da roupa que eu estava, mas eu sempre usei a mesma vestimenta que eles, nada nos diferenciava. Um dia o gestor me disse que eu estava finalmente com cara de enfermeira. Qual é a ‘cara’ de uma enfermeira? Eu vi que isso era racismo comigo”, conta.

O site da empresa descreve a plataforma interna de denúncias Helpline como anônima e confidencial, voltada “exclusivamente para o reporte de preocupações relacionadas à conduta ética e ao cumprimento da lei, dos regulamentos e políticas internas da Embraer”.

Para os ex-funcionários ouvidos pela Alma Preta, no entanto, a política de compliance da empresa é falha. O termo se refere ao conjunto de práticas adotados por organizações para manter a conformidade com leis, regulamentações e padrões éticos.

Antes de recorrer à plataforma Helpline, a ex-funcionária pediu auxílio dos gestores para lidar com a situação, mas não conseguiu uma resposta que impedisse os constrangimentos. O estado de estresse constante junto às microagressões diárias resultou em sintomas físicos e depressão severa.

“Eu comecei a adoecer. Comecei a ouvir zumbidos, mas fui ao otorrinolaringologista e não era nada. Minha coluna começou a travar, mas fui ao ortopedista e não deu nada. Afetou minha arcada dentária, começou a travar meu maxilar. Perdi peso porque tive dificuldade para comer”, relata.

Funcionários trabalham no hangar da Embraer, em São José dos Campos, interior de São Paulo, 30 de maio de 2022
Funcionários trabalham no hangar da Embraer, em São José dos Campos, interior de São Paulo, 30 de maio de 2022 (Nelson Almeida/AFP)

Segundo os autos do processo, a ferramenta de denúncias resultou em uma breve sindicância, na qual foram chamados alguns profissionais que dividiam o setor com a vítima e também sua agressora. Ao final do procedimento, a agressora recebeu uma notificação e a denunciante foi desligada. 

Uma testemunha ouvida pela reportagem, que acompanhou o procedimento instaurado pela Embraer para apurar a denúncia, destaca que o processo de apuração feito pelo compliance atestou que a ex-funcionária sofria com tratamento discriminatório da colega.

“Foram ouvidas várias pessoas que trabalham junto com ela, que têm interface tanto com a suposta vítima como com a pessoa que foi denunciada. Foi trazido e confirmado ali que a maneira em que ela era tratada por essa colega de trabalho era discriminatória. Ela [a agressora] nunca falou especificamente isso, nunca deixou claro, mas é o racismo velado, né?”, conta.

‘Comentava sobre minhas características como mulher negra’

Outra ex-funcionária, demitida por justa causa, diz que buscou auxílio da plataforma de denúncias em duas ocasiões diferentes. A primeira, referente a assédio moral, terminou com um parecer favorável à vítima, resultando no desligamento do gestor.

Na segunda queixa, a vítima conta que a denúncia foi realizada contra o gestor substituto devido a piadas de conotação sexual e comentários racistas sobre os traços raciais da ex-funcionária. 

“Ele perguntava sobre a minha vida sexual com o meu namorado e detalhes do meu relacionamento. Ele comentava sobre minhas características como mulher negra, sobre meus lábios, meu nariz, o meu corpo e principalmente meu cabelo”, relata.

Certo dia, ao passar em frente a um prostíbulo durante o trajeto de uma viagem de trabalho, relata a vítima, o gestor teria apontado para o local e insinuado que ali seria o perfil de evento para a ex-funcionária. O homem também teria pedido para a vítima prender seu cabelo durante uma reunião, alegando que seria mais profissional.

“Uma vez ele falou para mim que a melhor forma de uma mulher se livrar do assédio é se casando. Ele também questionava os bens materiais que tenho e até o meu estilo de vida, pelas viagens que faço nas férias”.

A mulher também desenvolveu um quadro de depressão e estresse, e segue em tratamento. A denúncia na plataforma Helpline foi aberta por ela e por colegas de setor, que também estavam insatisfeitos com a conduta do chefe em relação à ex-funcionária.

Um modelo da aeronave E195-E2, da Embraer, em exibição no escritório da empresa em Singapura, 29 de junho de 2017
Um modelo da aeronave E195-E2, da Embraer, em exibição no escritório da empresa em Singapura, 29 de junho de 2017 (Foto: Rosaln Rahman/AFP)

Assim como no caso anterior, a situação no ambiente de trabalho se tornou mais hostil depois do registro da queixa. Segundo o processo, a Embraer ofereceu apoio psicológico e encaminhou a vítima para um profissional da empresa, que, de acordo com a vítima, invalidou seu sofrimento.

O psicólogo teria sugerido que o agressor sentia atração sexual pela funcionária por considerá-la atraente. Além disso, o profissional ainda afirmou que o fato de ser uma mulher negra dava permissão para que os abusos ocorressem.

Meses após ter feito a denúncia no Helpline, a ex-funcionária foi desligada com a justificativa de baixa performance e falta de obtenção de lucros.

“Em momento algum meu escopo de trabalho foi relacionado a obter lucros para a empresa. Eu sofri uma perseguição porque houve a investigação. Só não sei dizer o que aconteceu nesta investigação, porque a Embraer não deu um retorno”, recorda.

À reportagem, uma testemunha que dividiu o setor com a vítima durante o período das agressões confirmou o constante comportamento problemático do gestor. A pessoa também realizou uma denúncia no Helpline sobre o caso, mas não recebeu nenhum encaminhamento do procedimento.

“Ele [o gestor] desmerecia as entregas dela, deixava de dar crédito em grupo de trabalho e coisas do tipo. Ele também criticava o cabelo dela, o relacionamento dela, trazia pontos da vida pessoal dela com o contexto totalmente distorcido, sabe?”, diz.

Na reunião após o desligamento da vítima, na qual a testemunha estava presente, a demissão teria sido anunciada pelo próprio gestor denunciado pelos funcionários.

Procurada pela Alma Preta, a Embraer afirmou não comentar processos individuais em tramitação na Justiça e alegou ser uma empresa comprometida com a diversidade.

“Como signatária do Pacto Global da ONU desde 2008, a Embraer está comprometida em promover a diversidade, a equidade e a inclusão de pessoas de diferentes grupos sociais sub-representados. A Embraer conta com uma política robusta para coibir situações em desacordo com seus altos padrões de ética e governança e aplica todas as medidas necessárias para que suas normas e a legislação sejam cumpridas”, diz trecho do comunicado.

‘Não tive a chance de me defender’

Outro ex-funcionário ouvido pela reportagem relata que a demissão o pegou de surpresa. Após mais de uma década trabalhando na Embraer, o homem foi acusado de manter sociedade com um escritório de advocacia que supostamente atuava em ações trabalhistas contra uma subsidiária da empresa.

O homem, que ocupava um cargo no alto escalão da empresa, alega que nunca manteve relações de trabalho com o referido escritório no período em que trabalhou para a Embraer. O local pertence a um colega advogado com quem manteve sociedade no passado. 

O ex-funcionário conta que não estava com a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) apta para atuação na época em que foi desligado. Seu colega teria atuado sozinho como advogado individual em quatro dos processos alegados pela empresa.

“Baseado nisso, eles tiveram o entendimento que eu passei informações privilegiadas para o meu sócio. Eles me acusam até de ter assinado as procurações junto com o meu sócio. Eu não tive a chance de participar de qualquer investigação, de me defender”, explica.

Um jato executivo Legacy 500 da Embraer é exibido durante feira internacional de aviação, Rio de Janeiro, 29 de março de 2017
Um jato executivo Legacy 500 da Embraer é exibido durante feira internacional de aviação, Rio de Janeiro, 29 de março de 2017 (Yasuyoshi Chiba/AFP)

A demissão, justificada como “conflito de interesses” pela Embraer, teria sido resultado de uma suposta denúncia no Helpline, mas o ex-funcionário não foi informado de nenhuma sindicância contra ele.

“Esses processos que eles me acusam são do ano de 2017 e 2018, quando eu trabalhava na área de qualidade. Na época era uma área que eu trabalhava diretamente com produto, não poderia ter informações privilegiadas. Não deixaram nem eu trazer isso como defesa ou mostrar que eu nem pagava mais a OAB”, recorda.

A ação trabalhista descreve que, além da demissão injustificada, a Embraer teria alterado os termos de desligamento em relação ao convênio médico. Antes da demissão, os termos permitiam a continuidade da cobertura desde que o beneficiário continuasse os pagamentos integralmente e por conta própria.

À época, o ex-funcionário realizou três procedimentos cirúrgicos. Devido à gravidade da lesão que causou os procedimentos, é necessário constante acompanhamento médico e fisioterapêutico para garantir sua qualidade de vida.

Depois do desligamento, a gestora responsável teria o informado verbalmente que o convênio só seria prorrogado por mais cinco meses. 

O advogado Fernando Costa de Aquino, responsável pelos quatro processos trabalhistas utilizados pela Embraer para justificar a demissão, apresentou à Alma Preta o número, as ações e a lista de defesa das partes. Em nenhum momento, o ex-funcionário é citado como um dos advogados que atua no processo.

A ação trabalhista teria sido aberta contra uma viação que prestava serviços de transportes para a Embraer, envolvida no processo por responsabilidade subsidiária.

“Quando a gente coloca uma empresa como garantidora, não tem nem essa história de ‘informação privilegiada’. A única coisa que o trabalhador fala para a gente é a rotina de trabalho. Mas eles nem entravam na Embraer, o acesso deles era só no estacionamento. Não tinha como ter informação privilegiada”, aponta.

Embraer nega acusações

À reportagem, a defesa responsável pelos três casos do TRT-15 afirma que os relatos apresentam fortes indícios de condutas racistas, discriminação e assédio moral e sexual no ambiente de trabalho da Embraer.

Os registros apontariam, segundo a defesa, que determinadas denúncias realizadas por meio do Helpline resultaram em advertências brandas para os denunciados e no desligamento para os denunciantes, o que levanta questionamentos sobre a efetividade do compliance interno e a isonomia na aplicação de penalidades.

A defesa sustenta que, nos autos do processo, a Embraer classificou as denúncias como um conluio para atacar a imagem da empresa. No documento, ao qual a reportagem teve acesso, a companhia ainda negou que a vítima tenha sofrido racismo.

“A Reclamante não foi vítima de racismo, e não há nos autos qualquer prova nesse sentido. Sua dispensa não guarda relação com qualquer prática de racismo. Não há um único fato descrito pela Reclamante que nos remeta a prática de discriminação racial e/ou racismo estrutural”, sustentou a defesa da Embraer em um dos processos.

Uma aeronave E-175, da Embraer, é acompanhada por um mecânico em um hangar de Minsk, Belarus, 19 de abril de 2018
Uma aeronave E-175, da Embraer, é acompanhada por um mecânico em um hangar de Minsk, Belarus, 19 de abril de 2018 (Foto: Maxim Malinovsky/AFP)

Em análise sobre o contexto das denúncias contra a companhia, a defesa das vítimas ouvidas pela Alma Preta argumenta que o racismo estrutural se manifesta de maneira velada no ambiente de muitas empresas, por meio de atitudes e decisões que influenciam negativamente a trajetória profissional de trabalhadores negros.

Para a defesa, o viés discriminatório no espaço profissional precisa ser combatido com veemência, em vez de normas e ferramentas internas de conduta que, muitas vezes, não são o suficiente para detectar e coibir práticas racistas.

Ação pede indenização e suspensão de empréstimos públicos

As ações trabalhistas solicitam o pagamento de indenização individual por danos morais, materiais, existenciais às vítimas, a nulidade das demissões e a reintegração dos ex-funcionários aos seus cargos. 

Além das reparações individuais, os processos pedem que o Tribunal Regional do Trabalho aplique a Lei 9.029/1995, que proíbe que empresas mantenham práticas discriminatórias em seus processos seletivos ou na manutenção da relação de trabalho. 

A legislação prevê uma multa administrativa de até dez vezes o valor do maior salário pago pela empresa e também proíbe o empregador de obter financiamentos federais por um determinado período. 

O advogado das vítimas recorda que a recorrência de casos de discriminação, assédio moral e sexual pode levantar questões sobre a conformidade da empresa com as políticas públicas e diretrizes de igualdade racial exigidas para concessões de benefícios e financiamentos federais.

As ações demandam que o Judiciário oficie bancos públicos, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), para proibir a Embraer de obter empréstimos com recursos públicos, bem como determinar a inclusão da empresa no Banco Nacional de Devedores Trabalhistas (BNDT).

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  • Verônica Serpa

    Graduanda de Jornalismo pela UNESP e caiçara do litoral norte de SP. Acredito na comunicação como forma de emancipação para populações tradicionais e marginalizadas. Apaixonada por fotografia, gastronomia e hip-hop.

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