As plantas e as ervas são utilizadas pela humanidade desde tempos ancestrais e imemoriais para o cuidado da saúde física e emocional. Em formas de chás, xaropes, escalda-pés, pomadas, entre muitos outros usos, as receitas utilizam os recursos disponibilizados pela natureza para curar o corpo e a alma, além de fortalecer e preservar os saberes populares nos cuidados coletivos.
As mulheres, principais detentoras desses conhecimentos milenares, promoveram avanços no cuidado com a saúde, além de descobrirem tratamentos inéditos para doenças. Entretanto, ainda não há um reconhecimento por parte da medicina convencional sobre a importância das “bruxas” do passado, benzedeiras e rezadeiras, por exemplo, para o avanço dos tratamentos de cura e cuidado.
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A historiadora e pós-doutora em Educação Yls Rabelo Câmara conta que os saberes sobre os usos de ervas e plantas estava mais ligado à egrégora feminina porque os homens nem sempre estavam nos acampamentos e aldeias.
“As mulheres, desde o Neolítico e em alguns rincões do planeta mais do que em outros, a depender de muitos fatores, eram as que ficavam tomando conta do lugar, junto às crianças, aos velhos, aos jovens imberbes e aos fisicamente inábeis. Para além disso, umas ajudavam as outras a parirem e, se fosse o caso, participavam, com ervas, na eutanásia de seus pares se houvesse necessidade”, explica a historiadora, que também pesquisou as rezadeiras da periferia de Fortaleza e percebeu relações com as atividades das bruxas europeias.
A pesquisadora Yls Rabelo Câmara conta que conforme o elemento cristão foi introduzido nas sociedades europeias antigamente, a mulher que sabia mais que os homens e que tinha um conhecimento diferente que não fosse só sobre guerras e caças, passou a ser muito mal vista e foi banida e discriminada. Na Inquisição e na caça às bruxas, elas sofrerem uma grande perseguição.
Pintura de mulher condenada à morte por bruxaria – Autor desconhecido | Crédito: Reprodução/ Ateliê Fazendo Arte
“Essa mulher foi cada vez mais ojerizada a tal ponto que foi praticamente banida. Em vários pontos da Europa houve um quase desaparecimento dessas mulheres sábias. No entanto, a Inquisição não se deu de forma muito homogênea na Europa como um todo e, em alguns países como Portugal, a mulher quando era condenada por bruxaria tinha a opção de escolher morrer ali ou ser banida para a colônia, como o Brasil”, explica.
A historiadora também conta que as mulheres europeias que chegavam ao Brasil, não morrendo durante a viagem, foram se adaptando ao ambiente e também mesclando o conhecimento com os povos que aqui encontraram.
“Elas tiveram livre acesso a essas pessoas também que traziam consigo o conhecimento ancestral. Aqui chegando, mesclaram esse conhecimento com os dos autóctones (indígenas) e também com o dos escravizados, criando um mosaico de influências que nos caracterizam”, destaca a pesquisadora.
A etnofarmacobotânica e especialista em plantas medicinais Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo destaca que é a partir do saber popular voltado ao uso de plantas medicinais na cura de problemas de saúde que a ciência evolui e vem a desenvolver as fórmulas químicas para a produção de medicamentos.
“O saber popular arraigado na cultura de um povo dá origem ao saber científico. Os conhecimentos desses saberes estão nos primeiros passos da caminhada científica para o conhecimento das atividades farmacológicas das plantas medicinais usadas popularmente na cura de doenças”, explica a especialista.
Yls Rabelo Câmara ressalta que, apesar disso, as mulheres e os detentores desses saberes populares não são reconhecidos ou lembrados como os que descobriram e guardaram esses saberes pela ciência e medicina convencional.
“Esse saber ancestral foi fagocitado de maneira iconoclasta pelo saber hegemonicamente masculino, rebatizado e suas detentoras antigas foram desabonadas. O homem realmente tomou para si esse conhecimento, cientifizou esse conhecimento, que é profundamente ancestral. Eles sabem que vem delas [mulheres ancestrais], mas não dão a elas esse crédito”, explica.
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Sabedoria que resiste
De acordo com Ayna Oluremi, perfumista botânica na Alkímika, a melhor maneira de manter a sabedoria ancestral viva, mesmo dentro de uma cultura ocidental que está a todo tempo querendo destituir as mulheres desse poder é se unir a outras mulheres que estão fazendo essa busca e que praticam essa medicina antiga.
“É trocar ideia com as raizeiras, com as benzedeiras, com as parteiras que ainda resistem e vivem e seguem firmes, apesar de toda a tentativa de destruição desse patriarcado. É conversar com as senhoras que estão nas bancas de ervas, é buscar essas memórias ancestrais na sua família”, destaca.
Para a pesquisadora Yls Rabelo Câmara, é importante que rezadeiras tradicionais e curandeiras atuais unam forças e recebam incentivo para trazerem à luz o que muitas vezes realizam nas sombras, seja por medo ou por falta de oportunidade de mostrarem seus préstimos.
“É preciso que esse conhecimento que nos remete à infância da humanidade seja reavaliado, revalorizado e revalidado; que as escolas o mostrem sem a pecha de obscurantismo que a Igreja lhe impregnou, mas como um conhecimento inerente ao que de mais humano temos”, pontua.
Cultivada nos jardins de casa
Caninha do brejo e Tapete de Oxalá | Crédito: Acervo pessoal de Iya Cristina
De acordo com o conhecimento milenar, plantas e ervas medicinais são utilizadas para tratar problemas de saúde, como dores no estômago, ansiedade e estresse, por exemplo. Seja para equilibrar o ambiente ou por terem propriedades curativas, essas plantas podem ser cultivadas nos jardins de casa e serem aliadas a tratamentos passados pela medicina convencional.
A benzedeira Tia Eliza de Luca, que atua há mais de 20 anos em uma capelinha no bairro Bela Vista, em São Paulo, em homenagem a Santo Antônio de Categeró, conta que desde pequena foi ensinada pela família a utilizar chá, como de erva cidreira e erva doce, e banhos de ervas, como de manjericão e alecrim, para se cuidar.
Para os benzimentos, Tia Eliza relata usar muito as plantas arruda e guiné em um arranjo, boas para limpeza energética.
“Faço um buquê. Sempre uso guiné e arruda, quando não tem guiné, eu pego uma outra planta. Eu tenho aqui no quintal. Arruda mesmo, falo que é a base de tudo. Não posso ficar sem. Até tomar chá de arruda é bom. Louro também é muito bom para fazer banho e chá. Salsa, cebolinha também é bom para abaixar também pressão alta. Tem várias dicas de plantas assim”, explica a benzedeira.
Para proteção espiritual, Tia Eliza sempre indica para as pessoas um vaso com sete ervas de poder: manjericão, arruda, Comigo-ninguém-pode, alecrim, Espada-de-São-Jorge, guiné e erva pimenteira.
“O boldo é bom para o fígado, para limpar por dentro”, comenta a benzedeira, além de falar da importância de frutas como laranja e limão para fortalecer o sistema imunológico.
Também de acordo com Iya Cristina d’Osun, líder religiosa do Ilê Asé Iyalodê Oyo Asé Olorokê T’ Efon, dentro do conhecimento das tradições de matriz africana, o boldo, ou Tapete de Oxalá, é utilizado como um escalda-pés fortificante físico, mental e espiritual, além de ser um chá energizante.
“O boldo tem uma função hepática muito importante para desajuste e desequilíbrio dentro da fitoterapia, mas na naturopatia, ele vai ser um grande emoliente, um grande oxidante que vai auxiliar nos contatos físico, mentais e espirituais de equilíbrio para tirar a negatividade e fortalecer a positividade”, explica a líder religiosa, que também é formada em naturopatia.
Iya Cristina também fala sobre a hortelã, que em escalda-pés é boa para energizar, centralizar em momentos de tensão e fortificar as pessoas. Em chás é boa para para os desequilíbrios estomacais e intestinais.
“Um outro que é muito importante e ninguém dá valor é a caninha do brejo. É uma folhagem que dá na beira do rio, que é muito importante também para a parte filtrante dos rins. É um antibiótico natural para os rins”, comenta.
A perfumista botânica Ayna Oluremi também destaca algumas plantas importantes para a ginecologia natural.
“Dentre tantas ervas e plantas poderosas, eu destaco a camomila, erva mãe que acolhe, que cura e que cuida. A camomila consegue acompanhar uma pessoa desde o começo da vida até o final. É muito benéfica no cuidado para quem está na fase da infância ainda, porque alivia as dores da dentição. Vai ser útil nos processos da primeira menarca quando vem a primeira menstruação para evitar cólicas menstruais, para lidar com a TPM e ansiedade”, explica.
Além disso, segundo a perfumista, a camomila é uma erva que traz alívio para estresse e ansiedade. Pode ser utilizada em escalda-pés e em banhos de assento em qualquer fase da vida para cuidar e para prevenir qualquer adoecimento ginecológico.
“A camomila, por exemplo, junto à uma calêndula faz um banho de assento muito útil para prevenção de desequilíbrio ginecológico como a candidíase, qualquer corrimento que possa surgir a partir de uma infecção”, comenta.
Entretanto, Ayna Oluremi também ressalta que utilizar a camomila nas dosagens erradas é capaz de derrubar a pressão ou causar disenteria. “É sempre importante, mesmo que a erva seja muito suave, como é o caso dela utilizar dentro das recomendações de posologia correta”, explica.
Além disso, a perfumista ressalta que os conhecimentos da ginecologia natural não brigam com a medicina convencional, mas se aliam a eles. “A ginecologia natural não é necessariamente sobre nunca mais fazer uso de remédios alopáticos, nunca mais ir ao médico, nunca mais ir a ginecologista, mas é sobre ter autonomia e também buscar profissionais que tenham o máximo de cuidado e respeito com o nosso corpo”, finaliza.
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