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Heróis invisibilizados: a história dos negros escravizados que replantaram a Floresta da Tijuca

Em entrevista à Alma Preta, deputada estadual e pesquisador falam sobre a importância de uma reparação histórica e o impacto positivo da floresta para a cidade do Rio de Janeiro
Estátua "Escravizado", na Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro.

Estátua "Escravizado", na Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro.

— Vinício Antônio Silva/EMBRATUR

7 de abril de 2025

O Parque Nacional da Tijuca, conhecido por abrigar a maior floresta urbana replantada pelo homem no mundo, esconde uma história pouco conhecida: o reflorestamento da área foi realizado pelas mãos de 11 negros escravizados há mais de um século.

Os trabalhos de plantio entre 1861 e 1874 foram motivados pela crise de abastecimento hídrico que afetou a cidade do Rio de Janeiro e pela crescente expansão urbana. A colonização intensificou o problema, principalmente devido ao desmatamento e ao modelo de cultivo do café, que devastou grandes áreas de vegetação.

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A solução encontrada foi regenerar a floresta em uma missão determinada por Dom Pedro II, que designou o Major Archer para comandar a ação, envolvendo os negros escravizados cujas histórias foram apagadas ao longo do tempo.

Em março deste ano, uma iniciativa de resgatar essa história ganhou força com a aprovação do Projeto de Lei 605/23, de autoria da deputada estadual Dani Monteiro (PSOL-RJ). A proposta reconhece Maria, Eleutério, Constantino, Manoel, Mateus, Leopoldo, Sabino, Macário, Clemente, Antônio e Francisco  como Heróis e Heroínas do Estado do Rio de Janeiro, uma forma de combater o esquecimento de um grupo formado por uma mulher e dez homens negros.

Em entrevista à Alma Preta, Dani Monteiro conta que a história chegou ao seu conhecimento durante uma visita à floresta, quando viu a estátua em referência aos escravizados, responsáveis pelo feito histórico. 

Inicialmente, seis escravizados iniciaram o plantio na área da Floresta da Tijuca. Ao longo dos anos, o grupo foi ampliado com outros cinco para recuperar a floresta das Paineiras.

A deputada destaca que a movimentação é importante para alcançar as metas propostas pela iniciativa, que incluem localizar os possíveis descendentes dos escravizados e oferecer uma reparação direta às suas famílias, além de promover a memória e reparação da população negra, que ainda sofre com as consequências da escravização, como a desigualdade e o racismo.

A proposta visa recontar a história para que crianças possam estudar desde cedo a trajetória dos escravizados como heróis, reconhecendo a importância do grupo para a população negra no Brasil.

“A mão preta e a intelectualidade preta que construiu e segue construindo esse país. A reparação está muito distante e só haverá reparação se houver referência à memória”, defende a parlamentar.

O projeto também tem como objetivo ressaltar a crise climática que afeta o estado do Rio de Janeiro, que enfrenta problemas semelhantes aos vividos no início do reflorestamento, como a escassez de abastecimento de água e as temperaturas extremas que impactam a cidade.

“A preservação dos mananciais é o mais importante para a garantia do abastecimento. Qualquer carioca que passa naquela floresta acha que ela é original, então significa que existem chances, que a gente pode reflorestar e revitalizar diversas áreas da nossa cidade, do nosso estado”, complementa.

Reparação histórica da estátua

Além de resgatar a história dos construtores da floresta, o projeto busca alterar a placa da estátua que atualmente usa o título de “escravo” e nomeia o grupo da mesma forma. A ação é uma medida de reparação histórica para mudar a representação desses personagens, que simbolizam um contexto histórico maior, além do atual, que segundo a parlamentar perpetua o racismo estrutural e reforça a colonização.

“A gente quer mudar, por exemplo, o termo escravo para escravizados, ou na melhor versão, seres humanos escravizados. Queremos diminuir a referência ao Major Archer e realmente referenciar o nome dos 11. Se possível, um outro monumento mais à frente, que não seja um ser humano preto curvado em subserviência, mas sim representado 11 heróis e heroínas a força e vitalidade do povo preto como deveria ter sido.”, destaca Dani Monteiro.

Placa de identificação da estátua "Escravo", localizada na Floresta da Tijuca.
Placa de identificação da estátua “Escravo”, localizada na Floresta da Tijuca. (Foto: Reprodução/Redes sociais)

Trabalho ancestral de reflorestamento

O reflorestamento teve como intuito proteger a mata ciliar do Rio Carioca, principal fonte de abastecimento de água da cidade. A partir de um decreto de 1817 foi proibido o corte de árvores, madeiras, lenhas e matos em áreas ao redor das nascentes do rio.

Mais de 100 mil árvores foram replantadas pelos escravizados em 13 anos, com espécies da Mata Atlântica. Já naquela época, o grupo demonstrou um conhecimento especializado sobre a dinâmica da floresta.

O pesquisador Gabriel Sales, professor de Biologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), aponta em entrevista à reportagem a importância do reflorestamento realizado pelo grupo nas áreas desmatadas, especialmente nos primeiros anos do trabalho florestal. Durante esse período, foram aplicadas técnicas ancestrais, com um entendimento especializado sobre o ecossistema local.

“As atividades para a recuperação das florestas eram diversas como aquisição de sementes de árvores, preparo dos canteiros, semeadura, tratamento das sementes germinadas, preparo dos terrenos onde seriam realizados os plantios, o plantio das novas árvores, conservação dos plantios realizados e dos caminhos, dentre outros”, explica.

Apesar dos vestígios deixados pelo trabalho, existem poucos registros e referências sobre a origem, os descendentes e até mesmo o paradeiro do grupo, o que resulta em um apagamento histórico. 

Devido à escassez de informações, o pesquisador não encontrou respostas definitivas, mas acredita que, conforme as pesquisas avançarem, novas descobertas poderão surgir.

“Um documento publicado em 1862, por exemplo, revela somente o primeiro nome dos escravizados, onde são tratados como ‘Escravos da Nação’. Além disso, suas possíveis origens, indicando que dois seriam de Moçambique, além de outras informações gerais, como os trabalhos que poderiam desempenhar”, relata.

 Floresta da Tijuca. (Foto: Thomaz Silva/Agência Brasil)

O reflorestamento integra o maciço da Tijuca, que abrange as florestas da Paineiras, Corcovado, Tijuca, Gávea Pequena, Trapicheiro, Andaraí, Três Rios e da Covanca, que em 1967 recebeu o nome da área atualmente conhecida como Parque Nacional da Tijuca.

Gabriel Sales também chama atenção para os impactos positivos do reflorestamento, que constituiu um acervo considerado o primeiro projeto desse tipo desenvolvido no Brasil. O pesquisador destaca ainda que por conta da floresta a temperatura na cidade do Rio de Janeiro é de 2° a 6° graus menor.

“Hoje em dia tais florestas desempenham diversas importantes funções para a cidade, como a regulação climática e hídrica, dentre outras. Dessa maneira, projeta-se para o futuro, tanto no que tange às questões da ciência, da conservação biológica e da cultura, quanto ao modelo de sociedade que preveja uma nova racionalidade ambiental”, conclui.

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