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Homens negros gays são os que mais sofrem violência, segundo levantamento

Dados do MDH mostram que o grupo foi a principal vítima de violações de Direitos Humanos no início deste ano, sendo os agressores membros masculinos da família, como pai, irmãos e tios

Créditos de imagem: Colagem: I'sis Almeida/Alma Preta com adaptação de fotos de Sam Burris

Foto: Créditos de imagem: Colagem: I'sis Almeida/Alma Preta com adaptação de fotos de Sam Burris

28 de junho de 2022

A violência contra a comunidade LGBTQIAP+ mudou de nome e endereço de 2021 para 2022. Enquanto nos primeiros cinco meses do ano passado as principais vítimas eram mulheres trans, alvos de agressões e violações de direitos humanos nas ruas, em 2022 homens negros gays sofrem a violência dentro de suas próprias casas, sendo os agressores – majoritariamente – da família.

Esses dados, levantados pela Alma Preta Jornalismo junto ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH), mostram que das 422 denúncias feitas à pasta a respeito de violência de violações de direitos humanos contra os membros da comunidade LGBTQIAP+, 316 informavam que as agressões eram contra homens homossexuais, sendo 166 negros (soma de pretos e pardos).

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Negro, com idade de 20 a 24 anos, com ensino médio completo ou cursando a graduação, morador de regiões periféricas, com renda de até um salário mínimo. Esse é o perfil das vítimas, segundo o MDH. Os agressores normalmente são outros membros masculinos da família, como pai, tio, avô, primos e irmãos.

A principal motivação para que essas pessoas se tornassem alvos é a volta para o seio familiar devido às complicações financeiras causadas pela pandemia de Covid-19 e a influência da religião cristã no núcleo familiar.

“É natural que durante a pandemia e isolamento social essas violências se multipliquem. No caso dos homens negros LGBT, essa violência parte dos espaços primários de relacionamento, de dentro de casa, de igreja, escola. A gente tem que pensar que tipo de casa é essa que as pessoas negras residem – que muitas vezes são precarizadas”, é o que pontua o professor de Direito, Wallace Corbo, da Fundação Getúlio Vargas (RJ).

Mudança de alvo e cenário

O professor Wallace Corbo enfatiza que essa mudança de vítima e de cenário de violação de direitos humanos demonstra alguns aspectos sobre a sociedade. De acordo com ele, a violência contra homens gays negros já existia antes da pandemia, mas pode ter se intensificado e alcançado níveis drásticos, o que levou a vítima ou conhecido a realizar a denúncia.

“Em qualquer tipo de violência doméstica, a denúncia é muito difícil, pois um obstáculo psicológico é superado para poder denunciar um ente querido. A violência na rua é diferente, pois não está atrelada a vínculos familiares”, avalia.

É o caso dos irmãos Anderson e Priscila Marques*, de 22 e 27 anos, respectivamente. Moradores da região periférica da Zona Sul de São Paulo, ambos voltaram a morar com os pais após a perda de trabalho devido à pandemia no início deste ano.

Quando se assumiu homossexual, Anderson conta que a primeira coisa que fez foi se mudar da casa dos pais, a fim de evitar atritos. O pai, trabalhador da construção civil, sempre foi muito rígido e nunca aceitou ou respeitou a orientação sexual de seu filho caçula. Dona de casa, a mãe de Anderson e Priscila, de acordo com eles, não possui o perfil de confrontar o marido, por influência religiosa de que “a mulher tem que ser submissa”.

“Tive que voltar porque perdi meu trabalho. Mas assim que cheguei, a violência começou. Meu pai falou que eu podia ser essa ‘aberração’ da porta dele para fora, mas que ele jamais iria aceitar um filho gay, ainda mais por eu ser negro. Enquanto estava somente na violência verbal eu conseguia lidar. Mas quando a agressão física veio, eu me senti destruído”, lamenta o jovem.

“Já não basta ser preto e pobre, você ainda quer ser ‘viado’ também?”

“Um dia cheguei em casa de um ‘bico’ que fiz no dia das mães. Encontrei o Anderson no chão, sendo chutado pelo nosso pai. Ele chorava e meu pai gritava com ele enquanto chutava as costelas do menino. Ele falava ‘já não basta você ser preto e pobre, você ainda quer ser ‘viado’ também?’ Fiquei horrorizada”, conta Priscila.

A irmã da vítima disse que tentou impedir o pai, mas sem sucesso. Depois deste dia, outras agressões físicas foram praticadas contra Anderson, o que fez Priscila tomar coragem e denunciar o próprio pai.

“Meu pai é violento com a gente. Sempre foi. Na minha mãe ele nunca bateu, mas em mim e no Anderson, sempre que podia ele batia. Saímos de casa por isso e tivemos que voltar por falta de opção. Depois do dia das mães, na segunda-feira mesmo, ele agrediu meu irmão novamente. Meu sangue subiu na hora e entendi que precisava tomar uma atitude senão o Anderson poderia morrer”, desabafa a irmã mais velha de Anderson.

Priscila afirma que realizou uma denúncia anônima contra o pai e que ele já foi notificado pela justiça. A jovem explica que o pai acredita que a denúncia tenha vindo de vizinhos, que podem ter escutado a agressão contra Anderson e resolveram interferir.

“Eu denunciei por que uma coisa é você educar um filho, outra coisa é torturar. Na segunda-feira depois do dia das mães, meu pai esquentou uma colher na boca do fogão e colocou a colher quente na língua do meu irmão, dizendo que ele iria ‘pensar duas vezes antes de botar um pênis na boca’ novamente. Isso não se faz com ninguém, é cruel”, relata Priscila.

Raça é um fator relevante?

O professor de Direito Wallace Corbo pondera que a raça – no caso de violências praticadas contra homens negros gays – possui relevância devido à particularidade que é exigida desse indivíduo.

“A gente está falando de violências que acontecem em ambientes domésticos predominantemente periféricos. O que significa é que essas pessoas já estão numa situação de vulnerabilidade social, que é agravada pela violência doméstica, causada por LGBTfobia. Existe um aspecto que se impõe sobre homens negros, que é o fato da expectativa de masculinidade”, avalia.

“É exigida uma conduta e uma performance desse homem negro gay 24h por dia. Expectativas de masculinidade que, ao não atender, também multiplicam as possibilidades de violência”, completa o docente.

Anderson, vítima de agressão, afirma que o pai sempre bateu nessa tecla comentada pelo professor universitário. O jovem afirma que durante as surras, o pai dizia coisas do tipo “por que você não pode ser um preto ‘normal’ igual os outros?” Ou “como vou falar para o resto da família que você prefere ser gay do que um ‘comedor’, que é o que todo ‘negão’ é?”

“Meu pai faz eu me sentir errado por existir. Ele me agride, xinga, cospe, queima, por uma coisa que eu não escolhi ser, apenas sou. Minha mãe fala que a culpa é minha por que eu não tentei não ser homossexual, ou não me apeguei com Deus. Mal sabe ela que eu tento não ser desde que era criança”, desabafa o jovem.

Importância dos canais de denúncia

Priscila, irmã da vítima, afirma que a oportunidade de denunciar o pai de maneira anônima pelo Disque 100 possibilitou que as violências diminuíssem contra o irmão, mas não foi suficiente para eliminá-las de vez. Ela afirma que assim que a situação financeira melhorar, ela irá alugar uma casa para ambos, para que Anderson não seja mais alvo de violência. A relação com o pai, segundo Priscila, não existe mais.

“Eu não consigo sentir amor por uma pessoa que agride. Infelizmente, para o meu bem estar mental e o do Anderson, a gente precisa se afastar dessa família, se é que posso chamar assim. Eu não vou abandonar meu irmão e quando estivermos seguros, vou até o fim contra o meu pai. Ele precisa entender que tudo tem consequência. A denúncia foi só o primeiro passo”, enfatiza.

O professor Wallace Corbo pontua que os canais de denúncia são essenciais para reportar casos similares e evitar que a violêncioa se agrave. “A existência dos canais de denúncia contribui também para que possamos ter acesso a esses dados, e permitir que nós saibamos o que está acontecendo no espaço ‘opaco’, que é uma casa”.

“O Estado não entra na casa das pessoas, ele não consegue ver o que acontece dentro da casa das pessoas. Só consegue ver se as pessoas contarem, e elas só vão contar caso se sintam acolhidas dentro de espaços institucionais para poder reportar esse tipo de coisa”, explica.

LGBTfobia é crime: saiba denunciar

Em junho de 2019, em um julgamento histórico, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26, de relatoria do ministro Celso de Mello, o Supremo Tribunal Federal (STF), por oito votos a três, decidiu em favor da criminalização da LGBTfobia, reconhecendo, assim, a prática da conduta contra pessoas LGBT+ como crime de racismo até o Congresso Nacional elaborar legislação específica sobre o tema.

A partir da decisão, quem ofender ou discriminar gays, lésbicas, bissexuais ou transgêneros está sujeito a punição de um a três anos de prisão, prevista na Lei nº 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Assim como o crime de racismo, a LGBTfobia é crime inafiançável e imprescritível.

Para as vítimas ou alguém que tomou conhecimento de um crime de LGBTfobia, o primeiro passo é procurar as autoridades responsáveis para registrar o caso. Se a denúncia não for formalizada, ela nunca será reconhecida nem entrará para as estatísticas oficiais, segundo o professor Wallace Corbo.

Alguns estados possuem delegacias especializadas de combate à discriminação e grupos de promotores dedicados exclusivamente ao tema. Existem, ainda, canais municipais, estaduais e federais que recebem esse tipo de denúncia. O mais conhecido é o Disque 100, ou Disque Direitos Humanos, mas há inúmeras ouvidorias, conselhos e órgãos de Direitos Humanos locais que realizam função semelhante.

“Eu penso que se eu não fizer nada, meu irmão não tem força sozinho e eu estarei concordando com a atitude do nosso pai. Então, meu conselho é que as pessoas tomem uma atitude contra essa violência contra homens negros, senão isso nunca vai mudar”, finaliza Priscila.

*Anderson e Priscila são nomes fictícios, usados para resguardar a segurança dos entrevistados.

Leia também: ‘Quais as dificuldades enfrentadas por negros LGBTs no Brasil?’

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