A juíza Juliana Bessa Ferraz Krykhtine, da 4ª Vara Criminal de São Gonçalo (RJ), absolveu na terça-feira (9) os três policiais denunciados pela morte do adolescente João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, em 18 de maio de 2020, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo.
João Pedro foi vítima de um disparo de fuzil enquanto brincava em casa com os amigos durante uma operação conjunta da Polícia Federal e da Polícia Civil no local. O menino foi atingido na barriga e socorrido por helicóptero, mas não resistiu.
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No processo, os réus Mauro José Gonçalves, Maxwell Gomes Pereira e Fernando de Brito Meister foram acusados de homicídio duplamente qualificado, por motivo fútil e torpe, e fraude processual. No entanto, os três foram absolvidos de ambas acusações.
Ao longo do processo, os acusados alteraram as versões do crime em dois depoimentos sobre a quantidade de disparos feitos em direção à casa da vítima. No dia do crime, eles afirmaram para a Delegacia de Homicídios de Niterói e São Gonçalo (DHNSG) ter dado 26 disparos. Uma semana depois, os agentes alegaram ter disparado 64 vezes.
Nos autos do processo, ao qual a Alma Preta teve acesso, o relato de uma testemunha presente na cena do crime indica que os policiais adentraram na casa após a troca de tiros e perguntaram aos jovens onde estariam as drogas e armas e só depois perceberam que João Pedro havia sido atingido. Em dado momento, um oficial teria dito ao amigo da vítima: “Agora você vai socorrer o seu amigo”. Segundo o depoimento, os policiais não informaram para onde estavam levando a vítima após o colocarem no helicóptero.
Declarações de familiares apontaram que, quando chegaram ao local, os policiais não informaram que o adolescente havia sido atingido e levado pelo helicóptero, ou dado qualquer informação sobre o paradeiro do menino.
Apesar dos testemunhos, a juíza Juliana Bessa Ferraz acatou a versão relatada pelos policiais, de que havia uma troca de tiros com criminosos no momento em que João Pedro foi atingido. “Sob esse panorama, a fim de repelir injusta agressão, os policiais atiraram contra o elemento que teoricamente se movimentava em direção ao interior da residência”, diz trecho do parecer.
A magistrada alegou que, mesmo com a morte de um adolescente inocente, é necessário compreender que “a dinâmica dos fatos […] não pode ser inserida em um contexto de homicídio doloso por parte dos policiais”.
”A prova produzida nos autos não deixa dúvidas que a conduta dos réus se deu em legítima defesa e como tal deve ser reconhecida”, considerou a Juliana na decisão.
Os laudos apontaram que dois dos acusados portavam armas com calibre 556 mm, o mesmo que ocasionou a morte do jovem. No entanto, a juíza alegou que não foi possível indicar a autoria disparo e apontou os laudos e provas apresentados pelo Ministério Público (MP) como contraditórios. Com isso, a magistrada concluiu a autoria como indeterminada.
A consideração da juíza, no entanto, vai na contramão da Tese de Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal, definida em abril deste ano, que determinou que a perícia inconclusiva sobre a origem do disparo em operações policiais e militares não é o suficiente para afastar a responsabilidade civil do Estado.
Indignação e protestos
A decisão da juíza gerou protestos de familiares e de organizações do movimento negro. Ao jornal O Globo, o pai de João Pedro, Neilton da Costa, afirmou que a decisão “foi uma nova morte” de seu filho e que a família pretende continuar lutando na Justiça. O Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh), da Defensoria Pública do Estado do Rio Janeiro, também afirmou que vai recorrer da decisão.
Em nota publicada nas redes sociais, a Uneafro afirmou que a decisão judicial reafirma denúncias históricas do movimento negro de que “periferias, morros e favelas são territórios nos quais se opera o Estado de Exceção, fundado desde o estabelecimento do modo de produção escravista, de maneira que as regras estabelecidas pelo Estado de Direito lá não funcionam e/ou têm validade para as pessoas que de lá se originam, tal qual meninos negros como João Pedro e suas famílias”.
Histórico de “legítima defesa”
Essa não é a primeira vez que o Judiciário absolve policiais em casos como o de João Pedro. Em março, o 3º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro decidiu que o policial militar Alessandro Marcelino de Souza não teve intenção de matar Jonatha de Oliveira, assassinado com um tiro nas costas em 2014, em Manguinhos, na Zona Norte do Rio de Janeiro.
No mesmo mês, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) absolveu seis policiais militares envolvidos na morte de Cláudia da Silva Ferreira. A sentença — semelhante à decisão proferida pela juíza Juliana Ferraz — entendeu que os policiais agiram em legítima defesa para “repelir injusta agressão provocada pelos criminosos”. Cláudia foi arrastada pela viatura por cerca de 300 metros após ser atingida pelo disparo.
Outros três policiais acusados de homicídio pela morte de Eduardo Felipe Santos Victor, de 17 anos, foram absolvidos pelo juiz Daniel Werneck Cotta, da 2ª Vara Criminal. O adolescente foi morto a tiros em um beco no Morro da Providência (RJ), em 2015.
Em outra ocasião, dois ministros do Supremo Tribunal Militar (STM) votaram pela redução de pena dos oito policiais responsáveis pelo assassinato do músico Evaldo do Santos e do catador Luciano Macedo, mortos em 2019 durante a Operação de Garantia da Lei e Ordem (GLO), na capital carioca. No caso, mais de 80 tiros foram disparados em direção ao carro da vítima. O ministro Carlos Augusto Amaral, no entanto, alegou ter sido uma “fatalidade”.
Após a publicação, na mesma data, foram acrescentadas informações de contexto a este texto, apontando contradições do caso e o histórico de absolvição de policiais.