Dias de insegurança e muitos questionamentos sobre como estão os filhos da marisqueira Marilene Alves, 43 anos, moradora da Comunidade do Bode, na Zona Sul do Recife. Na próxima sexta-feira (9), a mãe completa um mês sem ver pessoalmente os garotos de 3, 11, 12 e 13 anos, que foram levados para um abrigo no bairro do Campo Grande, também na capital. Marilene teve o acolhimento provisório dos filhos sob justificativa de relatórios do Centro de Referência Especializado de Assistência Social enviados ao Ministério Público de Pernambuco (MPPE).
“Não como direito e não durmo sentindo falta deles. Toda vez que vou dormir, me acordo durante à noite e lembro deles. Tiraram meus filhos de dentro de casa, de perto de mim. Eles não estavam nas ruas. Isso, para mim, é um absurdo”, denuncia a mãe, em tom de revolta, em conversa com a Alma Preta Jornalismo.
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
As justificativas que transformaram um processo administrativo em judicial, o que levou um oficial de justiça à casa da marisqueira, são tidos como inverídicas e que fogem da realidade das crianças, segundo a advogada que acompanha o caso, Jéssica Jansen. Em relatório apresentado ao MP, 156 páginas trazem fatores como irregularidades no cartão do Bolsa Família, falta de assiduidade na escola e atraso no acompanhamento das doses de vacinas necessárias na infância.
De acordo com a defesa de Marilene, o estágio do processo só foi de ciência coletiva no dia em que as crianças foram recolhidas. “A apuração irreal e injusta pegou todos de surpresa. Inclusive, uma das crianças estava na escola durante a ação de recolhimento. A comoção foi geral. As crianças não entendiam o porquê estavam sendo levadas, nem a mãe”, relata a advogada.
Jansen, que também é presidenta da Livroteca Brincante do Pina – projeto de incentivo à leitura, integração artística, cultural e ambiental que tem como base uma biblioteca na Comunidade do Bode -, conta que decidiu tomar a frente do caso por vivenciar, diariamente, a presença dos jovens nas atividades extracurriculares propostas pelo espaço que coordena.
“Além do que foi apontado e desmentindo mediante documentação comprobatória, aqui no espaço temos a ciência de que os garotos participavam aulas de reforço, jogavam bola, praticavam jiu-jitsu, pintavam, brincavam, aprendiam a ler, a escrever e a fazerem música. Enfim, viviam suas histórias mesmo na dificuldade. Um deles perdeu um campeonato de luta importante e ficou triste com a notícia de que não poderia comparecer, inclusive”, relata Jéssica.
Ao todo, 60 documentos que desmentem os fatos apresentados nos relatórios foram encaminhados à 1ª Vara da Infância e Juventude, no Centro do Recife. Entre as comprovações da tutela coesa da mãe, o documento ressalta o apontamento inverídico de que o pai das crianças estaria detido. De acordo com a documentação, o genitor atua como pescador na comunidade e realiza trabalhos como auxiliar de pedreiro para complementar sua renda.
Leia também: Polícia tratou de forma desigual assassinato de Henry e sumiço de crianças em Belford Roxo
Encontros apenas pelo celular
Devido a pandemia pela COVID-19, ações de assistência entre crianças e genitores não seguem o formato tradicional. No último mês, Marilene começou a ver os filhos uma vez por semana através de um recurso de videochamada. Ferramenta foi viabilizada junto à casa de acolhimento através de um pedido solicitado pela advogada que acompanha o caso.
A mãe afirma não entender o porquê da atual situação da família. “Tantas crianças abandonadas precisando de uma casa, de um abrigo, e não tem. Já meus filhos, que estavam perto de mim, felizes comigo e com o pai, hoje, não estão. Não entendo o motivo que fizeram um absurdo desse. Fica difícil da gente entender e de suportar a saudade”, declara.
Mobilização
Uma mobilização na Comunidade do Bode e um vídeo publicado no último mês de junho nas redes sociais da Livroteca geraram comoção local, o que impulsionou a sensibilização das partes envolvidas no caso. De acordo com a advogada, representantes do CREAS e a 1ª Vara da Infância da Juventude concordaram com a defesa apresentada e encaminharam, em anexo, atualizações dos relatórios com as informações corrigidas e com pedido do desacolhimento das crianças no abrigo, porém, o problema segue no suspense de quando e como será resolvido.
Nas mãos do Ministério Público de Pernambuco, o caso, de acordo com advogada, segue sem novas atualizações. Na última solicitação feita pela família, o órgão alegou atraso por recesso das atividades por 10 dias como férias da metade do ano. “Gostaríamos de celeridade no processo e sensibilidade. Enquanto estamos aguardando novas atualizações, as crianças não sabem se tem culpa de alguma coisa no processo. O sentimento deles é que fizeram algo que justificou estarem lá. Na espera, a angústia da mãe e de todos envolvidos só aumenta”, aponta Jansen.
Para a defesa, após posicionamento do Ministério Público de Pernambuco, o próximo passo é agendar o despacho da ordem de liberação das crianças junto à juíza responsável. Entretanto, a falta de datas e retornos retarda o processo que, para a família, já deveria ter acabado ou não ter existido. Mãe e advogada pedem por celeridade nos trâmites judiciais.
“Enquanto isso eu vou sofrendo e eles também, por estarem longe de mim. Só peço à Deus que eles venham o mais rápido possível. Não aguento esse sofrimento e essa dor. Qualquer mãe no meu lugar estaria passando pelo mesmo. O tempo todo converso com o pai sobre eles e choramos. Estamos arrasados”, finaliza Marilene.
Procurada pela redação da Alma Preta Jornalismo, a assessoria do órgão, até o fechamento desta publicação, não apresentou posicionamento.
Leia também: Crianças negras morreram mais pela Covid-19, diz pesquisa