Neste mesmo dia (24), há cinco anos, em 2017, dez trabalhadores rurais sem terra foram mortos durante operação das polícias militar e civil na Fazenda Santa Lúcia, no município Pau D’Arco, no sudeste do Pará. Desde então, o caso segue sem punição dos responsáveis ou possíveis mandantes do crime. Além disso, cerca de 200 famílias que ocupam atualmente a área da fazenda correm o risco de serem despejadas.
De acordo com Andréia Silvério, coordenadora da Comissão Pastoral da Terra e uma das advogadas que acompanha o caso de Pau D’Arco, uma realidade que se vivencia no Pará, sobretudo nas regiões sul e sudeste, é a de crimes no campo, na grande maioria das vezes, não resolvidos ou investigados com isenção.
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“Principalmente não se identifica a motivação desses crimes para se chegar até possíveis mandantes. Na grande maioria dos casos, somente os executores são identificados, já os mandantes não”, comenta a advogada.
O sudeste do Pará também foi cenário de outro massacre no município de Eldorado do Carajás, em 17 de abril de 1996. Na ocasião, 21 camponeses foram mortos durante ação da polícia militar para desobstruir trecho de rodovia ocupada em protesto de trabalhadores rurais que reivindicavam reforma agrária. Dos 155 policiais que atuaram no caso, somente dois chegaram a ser condenados.
O caso de Pau D’Arco
A operação das polícias militar e civil aconteceu na manhã de uma quarta-feira na Fazenda Santa Lúcia com a justificativa de cumprimento de mandados judiciais de suspeitos pela morte de um segurança da fazenda. A ação ocorreu um dia depois da área ser novamente ocupada por 25 trabalhadores rurais sem terra. A fazenda já havia sido ocupada em outras ocasiões.
Durante a ação policial, foram assassinados nove homens e Jane Júlia de Oliveira, liderança do acampamento e presidenta da Associação dos Trabalhadores Rurais Nova Vitória.
Os policiais que participaram do massacre chegaram a contar à justiça que houve confronto armado com os trabalhadores, entretanto, durante as investigações, perícias realizadas pela Polícia Federal indicaram que o confronto não aconteceu. Além disso, há relatos de que as pessoas não haviam sido avisadas sobre os mandados judiciais.
A advogada Andréia Silvério explica que o processo criminal que foi proposto pelo Ministério Público contra os policiais que participaram das execuções está em grau de recurso no Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Em 2018, aconteceram as audiências de instrução e julgamento e, dos 17 policiais que haviam sido identificados como participantes do massacre pela Polícia Federal, 16 foram indiciados a participar de Tribunal do Júri, ainda sem data marcada enquanto é aguardado julgamento de recursos.
“Enquanto isso, foi também concedido através de uma ordem de habeas corpus do próprio Tribunal de Justiça uma decisão que possibilitou aos policiais envolvidos no massacre que voltassem a exercer normalmente as suas funções. Todos foram reintegrados ao trabalho e fazem inclusive policiamento ostensivo nas ruas em Redenção e outras cidades do sul do Pará”, também destaca a coordenadora da CPT.
Cemitério com vítimas do massacre | Crédito: Mario Campagnani/Justiça Global/Divulgação
O massacre ocorrido em 2017 continua reverberando na vida de sobreviventes até hoje, devido à falta de proteção e à insegurança. Em 26 de janeiro de 2021, um dos sobreviventes do massacre, Fernando dos Santos Araújo, foi assassinado dentro do local onde morava na Fazenda Santa Lúcia. Ele era considerado uma das principais testemunhas do caso e vinha recebendo ameaças, inclusive com uma tentativa anterior de homicídio em 2020, segundo a advogada Andréia Silvério.
“A gente aponta que, para além da gravidade que é o assassinato de uma testemunha e de um sobrevivente de um caso como esse, apontamos também uma inércia ou uma omissão por parte da Secretaria de Segurança Pública do estado do Pará e também da Delegacia Especializada em Conflitos Agrários aqui da região de Rendeção”, comenta Silvério, que explica que o inquérito sobre a morte de Fernando levou cerca de 11 meses para ser concluído e não considerou que ele fosse um sobrevivente e poderia sofrer ameaças.
Ela também destaca que um fato de preocupação também está no andamento das investigações sobre os possíveis mandantes do massacre. De acordo com a advogada, o procedimento para investigar a atuação de possíveis mandantes foi recentemente relatado e arquivado sem identificar o mandante ou ter algum tipo de indiciamento de inquérito.
“Isso reforça a nossa preocupação, que a gente manifestava desde o início, que era a necessidade de que essa investigação avançasse para que os mandantes não ficassem impunes”, finaliza.
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Situação atual das famílias da Fazenda Santa Lúcia
Atualmente, a Fazenda Santa Lúcia abriga cerca de 200 famílias que voltaram a ocupar a área logo após o massacre, ainda em 2017. Desde então, o local foi nomeado de Acampamento Jane Julia, em homenagem à liderança morta no massacre. No local, as famílias produzem uma variedade de alimentos, tornando-se uma das maiores áreas de produção de agricultura familiar e de subsistência, segundo informações da CPT.
A coordenadora da CPT explica que existia um processo administrativo de compra e venda da área que tramitava junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), para que o local fosse adquirido e transformado em projeto de assentamento para as famílias da ocupação.
De acordo com Andréia Silvério, a partir de 2019 e com a entrada do Governo Bolsonaro, houve a paralisação do Programa Nacional de Reforma Agrária e não se consegue mais avançar no processo administrativo, que foi arquivado, com o Incra justificando não ter mais recurso para aquisição da área.
Além do processo administrativo arquivado, atualmente as famílias correm o risco de serem despejadas em decorrência de uma decisão que foi concedida por juiz da Vara Agrária de Redenção, que ainda não foi cumprida por causa dos adiamentos em virtude da pandemia.
“A decisão [ADPF 828 – que suspende despejos na pandemia] já vence agora no dia 30 de junho e o nosso temor é que essas 200 famílias possam ser retiradas dessa área da fazenda sem ter para onde ir, porque, ao mesmo tempo que o estado insiste no cumprimento de despejos, ele não consegue apresentar uma alternativa para as famílias”, finaliza a advogada.
Em nota, o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) reforçou que, atualmente, o processo sobre o massacre de 2017 encontra-se no Tribunal de Justiça do Estado do Pará, aguardando designação de data para o julgamento dos recursos interpostos pelas defesas dos pronunciados.
Também alegam que os réus já foram pronunciados e foi encerrada a primeira fase do procedimento do tribunal do júri, que agora aguarda-se o julgamento para dar início a segunda fase, que é conhecida como Juízo da Causa, onde serão levados a julgamento.
“O processo aguarda o julgamento pelo TJPA dos recursos apresentados pelas defesas, existindo a possibilidade, de concluído o julgamento dos recursos no âmbito estadual, ter a decisão contestada pelos tribunais superiores. Alguns acusados foram beneficiados, por meio de habeas corpus, com medidas cautelares diversa da prisão (são algumas condições impostas aos réus em substituição a prisão). No momento não há nenhum preso”, também declara o MPPA.
A Alma Preta Jornalismo também questionou a Delegacia Especializada em Conflitos Agrários de Redenção e a Polícia Federal da região sobre o andamento dos processos sobre o Massacre de Pau D’Arco, em relação à investigação de possíveis mandantes e sobre a morte do sobrevivente Fernando. Até o fechamento do texto, o posicionamento não foi enviado. Caso haja uma resposta, o texto será atualizado.
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*Texto atualizado em 24 de maio de 2022, às 18h25, foi incluído o posicionamento do Ministério Público do Estado do Pará.