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‘Minha família está caindo no esquecimento’, diz parente de menino desaparecido em Belford Roxo

Relatos apontam arbitrariedades na investigação do caso dos meninos negros desaparecidos há nove meses; ativista diz que o caso não pode ficar impune como o da Favela do Acari, da década de 1990

Texto: Letícia Fialho | Edição: Nataly Simões | Imagem: Reprodução

Os três meninos que desapareceram em Belford Roxo, em 2020

1 de outubro de 2021

A investigação sobre o desaparecimento dos meninos de Belford Roxo, ocorrido em 27 de dezembro de 2020, é vista por ativistas e pelas famílias como uma arbitrariedade estatal, assim como o ocorrido em 1990, na Favela de Acari, com o sumiço de 11 jovens. Até hoje familiares buscam respostas sobre o paradeiro dessas e de outras vítimas.

Segundo a Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro,  os meninos de Belford Roxo desapareceram e estariam mortos por uma tentativa de furto de um pássaro que pertencia a um chefe do tráfico da comunidade. A justificativa foi dada após nove meses do desaparecimento dos garotos Lucas Matheus da Silva, 8 anos; Alexandre Silva, 10 anos; e Fernando Henrique Ribeiro, de 12 anos. 

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“Falta uma resposta para esses desaparecimentos. As autoridades mesmo não dizem nada. O tempo está passando e a nossa família está caindo no esquecimento”, relata Gabriel Pires, primo de Alexandre, em entrevista à Alma Preta Jornalismo.

A Polícia Civil concluiu o caso após o depoimento de uma testemunha no 39º Batalhão de Polícia Militar de Belford Roxo, que contou que os meninos foram assassinados por José Carlos dos Prazeres Silva, conhecido como “Piranha”, e os corpos depositados em um riacho ao fim da Estrada Manoel de Sá. 

Para a Defensoria Pública do estado, o caso segue em aberto, considerando que as provas apresentadas são insuficientes para o encerramento da investigação. A defensora Gislaine Kepe, que acompanha as mães das vítimas, afirmou em vídeo que “enquanto não houver consistência nos depoimentos colhidos pela polícia, enquanto não houver a identificação dos culpados, sejam eles por assassinato ou por desaparecimento, a Defensoria e as famílias não entendem que esse caso chegou ao fim”, reitera. 

Na avaliação da ativista Mônica Cunha, integrante do Movimento Moleque e da Coalizão Negra por Direitos no Rio, encerrar o caso foi uma forma que a polícia encontrou de se “livrar da pressão” dos mvimentos sociais. “Quando se trata de crianças negras, arrumam uma justificativa inconsistente para arquivar a investigação”, diz.

Leia também: Polícia tratou de forma desigual assassinato de Henry e sumiço de crianças em Belford Roxo

Semelhanças entre o caso de Belford Roxo e o de Acari

Desde 26 de julho de 1990, mulheres negras do Rio de Janeiro enfrentam ameaças e preconceito por tentarem ao menos saber onde estão os corpos de seus filhos. O movimento Mães de Acari surgiu após três garotas e oito garotos, dentre os quais a maioria, na época, eram menores de idade, estavam em um sítio em Suruí, município de Magé, quando homens encapuzados identificados como policiais os levaram de lá. Seus corpos nunca mais foram vistos. 

“Não queremos que ocorra o mesmo com as mães de Belford Roxo. Pelas mães e pelo sofrimento de cada uma. Não queremos que esse caso seja como os outros. Até porque existem muitas outras crianças desaparecidas e as famílias permanecem sem ter respostas”, relata Mônica.

O caso de Acari foi arquivado por falta de provas e o inquérito foi encerrado em 2010 sem que ninguém fosse indiciado pelo crime. 

“Eu tinha sete anos na época em que minha irmã desapareceu e foi super difícil lidar com isso. Mas enquanto tínhamos a nossa mãe viva, ela era a fortaleza da família, e também lidava com as questões de outras pessoas como militante dos direitos humanos”, lembra Aline de Sousa,  uma das porta-vozes do grupo Mães de Acari. Ela é irmã da jovem Cristiane Leite de Sousa (16 anos), desaparecida da Favela do Acari em 1990.  

A articulação dessas mães foi grande e influencia até hoje na maneira como mães que também perderam seus filhos para a violência cometida pelo Estado lutam por justiça. Sem resposta para o paradeiro de seus filhos, as Mães de Acari cobraram as instituições e investigaram por conta própria, levando suas denúncias para outros países. 

“Sumiram com a Kombi com vestígios de sangue e depois falaram que os corpos foram dados para jacarés. Mas cadê os jacarés que não foram encontrados? Falaram que acharam uma ossada, as mães foram até o local e encontraram um monte de terra”, conta Aline. 

O impacto das investigações das mães de Acari foi tão grande que houve tentativas de silenciá-las, um ato extremo foi o assassinato de uma das líderes do grupo, Ednéia da Silva Euzébio, em 1993. Os acusados também não foram condenados, e o caso não teve um desfecho até hoje. 

“Minha mãe foi Vera Lúcia Flores Leite, e lutou com todas as mães que não tiveram a oportunidade de reconstruírem suas vidas após o Estado sumir com seus filhos. Tem uma fala dela que diz: ‘eu tenho a certidão de nascimento da minha filha, mas não tenho a de óbito’. Minha mãe, que era uma mulher forte, adoeceu tanto e morreu sem respostas”, afirma a irmã de Cristiane. 

A porta-voz do grupo Mães de Acari reflete: “Quem foram os algozes dos desaparecimentos dos meninos de Belford Roxo? Eu acho terrível que tenhamos que passar por tudo isso novamente. Que outras mães passam pelo o que minha mãe passou até o fim. Os casos se dialogam, e sempre são as famílias negras as vítimas”, reitera a militante. 

Desaparecimentos forçados 

De acordo com os dados da SOS Crianças Desaparecidas, da Fundação para Infância e Adolescência do Rio de Janeiro (FIA-RJ), atualizados em julho de 2021, nos últimos 25 anos foram registrados 3.848 desaparecimentos. Entre os casos, 67,66% são do sexo masculino e 32,34% do feminino. O levantamento também aponta que 73,6% dos casos envolvem crianças e adolescentes negros, e cerca de  24,83% entre brancos. Milhares de famílias seguem sem ter resposta sobre o paradeiro de seus filhos.

 O Comitê da ONU sobre Desaparecimentos Forçados publicou no dia 29 de setembro de 2021 um relatório onde faz uma série de recomendações ao Brasil em relação ao tema. O documento aponta as ações que devem ser tomadas pelo Estado, que visa barrar a omissão e a falta de vontade de colaborar com a promoção de políticas públicas nas investigações e implementação de ações que impeçam a impunidade em casos de pessoas desaparecidas enquanto estavam em poder do Estado. 

No relatório final do Comitê da ONU, ao citar os casos recentes, o órgão reforça a preocupação com os grupos em vulnerabilidade social: “com as informações recebidas sobre desaparecimentos forçados alegadamente perpetrados em tempos recentes, há maior incidência contra pessoas de ascendência africana e pessoas que vivem em favelas ou nas periferias das grandes cidades”, diz o texto. 

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