O Centro de Justiça Racial da FGV Direito SP conduziu uma pesquisa sobre as mortes decorrentes de intervenção policial no estado de São Paulo entre 2018 e 2024. O estudo, intitulado “Mapas da (In)Justiça“, analisou 859 casos para compreender os mecanismos de responsabilização e os padrões estruturais que permeiam a violência institucional.
Do total de casos examinados, 62% das vítimas foram identificadas como negras – categoria que engloba pretos e pardos conforme a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em contraste, 25% das vítimas eram brancas, enquanto os 13% restantes não tiveram sua raça/cor registrada ou foram classificadas em outras categorias.
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
A disparidade é evidenciada quando analisados os motivos das abordagens policiais. Nas ocorrências registradas como “atitude suspeita“, três quartos das vítimas eram negras. Situação semelhante aparece nos casos com maior número de disparos, onde vítimas negras representam 23% dos casos contra apenas 9% de vítimas brancas em situações com múltiplos tiros (entre quatro e 69 disparos).
Procedimentos policiais apresentam deficiências
Os boletins de ocorrência, documentos fundamentais para o início de qualquer investigação, apresentaram deficiências em sua elaboração, conforme apontado pelo estudo. Em 83% dos casos analisados, as justificativas para as abordagens policiais foram genéricas, limitando-se a termos vagos como “prática de crime”, sem qualquer detalhamento ou comprovação concreta.
Em 8% das ocorrências, a simples menção a “atitude suspeita” foi considerada suficiente para justificar a intervenção, enquanto apenas 9% dos registros apresentaram fundamentações mais específicas e detalhadas.
A localização dos incidentes também segue padrões: a grande maioria (78%) ocorreu em vias públicas, espaços de circulação cotidiana onde o policiamento ostensivo é mais intenso. Os demais casos se dividiram entre residências (14%) e áreas comerciais (8%), mantendo em todos esses ambientes a predominância de vítimas negras.
Falhas nas perícias e investigação
O estudo identificou imprecisões nos procedimentos técnicos de investigação. A análise destaca a ausência do exame de resíduo de pólvora em 85,4% dos casos, teste fundamental para confirmar ou descartar a alegação de confronto armado.
A maioria das investigações limitou-se ao laudo necroscópico básico (presente em 79,7% dos casos), enquanto procedimentos mais completos, como a perícia de local de crime, foram realizados em apenas 8,9% das ocorrências.
Chama a atenção os elementos de possível execução sumária: em 16% dos casos foram identificados tiros na cabeça; 30% apresentaram trajetória balística de cima para baixo; e 6,4% mostraram evidências do que os especialistas chamam de “tiros de confirmação” – disparos adicionais contra vítimas já incapacitadas. Esses dados contradizem a versão de confronto apresentada na maioria dos boletins de ocorrência e sugerem a necessidade de investigações mais rigorosas.
Fluxo institucional e impunidade
O sistema de justiça como um todo demonstrou falhas estruturais no tratamento desses casos. O Ministério Público arquivou a totalidade dos 859 casos analisados, sem que nenhum policial fosse preso ou punido pelos óbitos decorrentes de suas intervenções.
O tempo médio para arquivamento foi de 615 dias, embora alguns casos tenham sido encerrados em apenas 32 dias, revelando uma disparidade nos prazos de apuração. As justificativas para os arquivamentos seguem padrões considerados pelo documento como questionáveis: em 95% dos casos invocou-se a “legítima defesa”, enquanto em 59% alegou-se “estrito cumprimento do dever legal”.
Nota-se ainda um viés racial nas caracterizações: vítimas negras foram associadas a “comportamento agressivo” em 59,4% dos registros, enquanto as brancas — classificadas como agressivas em apenas 23% dos registros — tiveram maior incidência de arquivamentos pela via burocrática do “cumprimento do dever”.
Desafios na transparência e recomendações
A pesquisa enfrentou obstáculos significativos no acesso às informações. Em 12% dos registros, os dados sobre raça/cor foram simplesmente ignorados, enquanto em 8% dos casos essas informações não foram encontradas nos sistemas. Os pedidos de acesso a dados levaram até dois anos para serem respondidos pelas instituições.
Diante dos achados, o estudo propõe um conjunto de medidas para aprimorar o sistema. A primeira e mais urgente é a criação de um banco de dados unificado entre as instituições, que permita o acompanhamento integrado dos casos. A implementação de protocolos padronizados para coleta de informações, com ênfase na obrigatoriedade de dados desagregados por raça e gênero, é considerada essencial.
O mapa ainda completa o conjunto de propostas com a sugestão do fortalecimento dos mecanismos de controle externo e a capacitação permanente dos agentes para aplicação correta da Lei de Acesso à Informação, para que a transparência e a efetividade das investigações sejam alcançadas.