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Negros com deficiência se deparam com um mercado de trabalho racista e excludente

A comunicação é apenas um dos entraves para a contratação nas empresas e denunciar práticas racistas pode ser mais difícil do que parece

Texto: Caroline Nunes | Edição: Nataly Simões | Imagem: José Cruz/Agência Brasil

Negros com deficiência se deparam com um mercado de trabalho racista e excludente

8 de abril de 2021

Dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) mostram que 23.069 pessoas com deficiência perderam o emprego desde o início de 2021. O estudo também aponta que não houve sequer um mês de saldo positivo para esse grupo desde o início da pandemia, em março de 2020.

Entre as pessoas que fazem parte desse grupo, estão as com deficiência auditiva, que compõem 5% da população brasileira, de acordo com o IBGE. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística aponta que destes 5%, que somam 9,6 milhões de pessoas, 2,1 milhões são surdos profundos ou escutam muito pouco e 7,5 milhões apresentam dificuldades para ouvir.

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O Brasil possui desde 1991 uma lei (8.213) que obriga as empresas a contratar pelo menos 2% de funcionários com esse perfil. Vinte e oito anos depois, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) tentou desobrigar as empresas a cumprirem essa cota, a partir do Projeto de Lei 6.159, de 2019. A proposta foi alvo de críticas no Congresso Nacional.

Segundo o intérprete pós-graduado em Libras, Anderson Donato, toda pessoa com deficiência auditiva esbarra em dificuldades para se inserir no mercado de trabalho, mas essa dificuldade é ainda maior quando se é negro. O especialista, autor de um artigo científico sobre a necessidade e importância do tradutor de Libras como facilitador do ambiente corporativo, explica que sem o respaldo de uma pessoa devidamente fluente na Linguagem Brasileira de Sinais é possível que os surdos negros sofram episódios de racismo desde o momento da entrevista e não percebam.

“Levando em consideração o abismo social e as dificuldades anteriores à ingressão, como educação, ou mesmo um respaldo familiar, é notória a diferença de acessos que uma pessoa negra com deficiência tem”, explica.

Anderson acrescenta que lidar com a questão racial é uma tarefa mais complexa para as pessoas com deficiência. Segundo o intérprete, quando a pessoa tem algum tipo de condição funcional ela é resumida apenas a isso, no caso, a deficiência, anulando suas demais características como raça, sexualidade e até mesmo preferências em geral, o que dificulta a auto identificação e também as reações de combate a atitudes racistas.

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Discriminação começa na contratação

Intérprete de Libras, Meire Cunha diz que a discriminação contra a pessoa negra e com deficiência auditiva costuma ocorrer já no primeiro contato do profissional com a empresa: a contratação. O primeiro entrave é a comunicação, já que nem sempre a empresa dispõe de um intérprete. Meire destaca que por vezes esse candidato é capacitado para exercer funções além das operacionais, mas a empresa o limita apenas para o ofício exigido pelas cotas.

“Se é uma vaga que exige linha de frente o surdo negro jamais será contratado. Ele vai concorrer de acordo com a lei de cotas, mesmo tendo capacidade e formação para uma vaga mais especifica”, detalha.

Em sua carreira profissional, a intérprete também já presenciou vários casos de racismo, principalmente em palestras de “alto padrão”, espaços onde interprétes negros não costumam ser chamados para atuar ao lado de palestrantes brancos.  “Hoje em dia, na área da inclusão, o intérprete negro é visto pela sua capacidade, mas antes era chamado apenas para trabalhar em palestras com temas voltados à questões raciais”, recorda.

Há desafios também para denunciar os casos de racismo. Caso uma pessoa negra com deficiência seja vítima de racismo no ambiente de trabalho, o intérprete deve transmitir a mensagem, o que serve também para que o indivíduo compreenda a postura racista dos outros.

“O racismo não depende do intermediário, que é o intérprete, mas sim do interlocutor. Esse é um debate ético da profissão, se o tradutor tem de ser fiel à mensagem ele não pode interferir”, sustenta Anderson.

Processo seletivo na pandemia

Durante o período pandêmico os desafios enfrentados pelas pessoas com deficiência no mercado de trabalho se tornaram ainda maiores, uma vez que não são todas as empresas que possuem intérpretes e o uso das máscaras de proteção contra a Covid-19 prejudicam a leitura labial.

Desempregada, Sara Alves, surda profunda devido à rubéola contraída pela mãe na gravidez, considera ser cansativo todo o processo seletivo. Para ela, as empresas “têm preguiça de adaptar a comunicação para atender as pessoas com deficiência auditiva”.

Uma solução simples, apontada por ela, para ajudar essas pessoas durante uma entrevista de emprego, por exemplo, seria a obrigatoriedade de uso de máscaras transparentes para facilitar a leitura labial.

A má vontade das empresas em facilitar o processo seletivo das pessoas com deficiência auditiva também é citada por Isadora Kondar, formada em Letras-Libras e que também está desempregada. Filha de pais surdos, ela perdeu a audição aos dois anos de idade.

Ela conta que é fundamental as empresas perguntarem ao candidato surdo qual o tipo de comunicação ele necessita ou prefere. “Existem diversas formas de conversar, seja com a presença de um intérprete, leitura labial, escrita por chat ou até mesmo aplicativos que facilitam esse processo”, explica.

Os desafios também não terminam na contratação. Sara destaca a invisibilidade das pessoas com deficiência dentro do ambiente corporativo. “As empresas não fazem reuniões inclusivas e dão apenas resumos para as pessoas com deficiência, como se elas não fizessem parte da equipe”, relata.

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Como superar essas barreiras?

Especialista em RH e surda profunda, Andressa Pires, avalia que uma alternativa para melhorar as condições de trabalho é a contratação de intérpretes, além da disponibilidade de cursos de Libras para todos os colaboradores. Anderson, por sua vez, pontua que a presença do profissional pode melhorar as interações sociais dos surdos dentro das corporações, pois esse ambiente tende a ser solitário para as pessoas com deficiência auditiva.

“A inclusão deve ser feita dentro do ambiente de trabalho. Sem ela existe o isolamento do funcionário PCD. A dificuldade em evoluir na carreira não pode ser motivada por conta da barreira na comunicação”, finaliza o intérprete.

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