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Novembro Negro: entenda por que as leis brasileiras têm como base o racismo

Em 1830, o país passou a ter o seu primeiro código penal, que, na teoria, buscava estabelecer normas e punir crimes dentro da sociedade brasileira, que há oito anos havia se tornado um Estado independente. Porém, a legislação escancarou uma série de medidas que determinaram quem era considerado criminoso

 

Ilustração: Vinícius de Araújo/Alma Preta Jornalismo

Foto: Ilustração: Vinícius de Araújo/Alma Preta Jornalismo

10 de novembro de 2022

“Um dia com fome, no outro sem o que comer/ Sem nome, sem identidade, sem fotografia/ O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver”. A letra da música “14 de maio”, escrita pelo cantor Lazzo Matumbi e o historiador Jorge Portugal, ilustra a real condição de vida dos negros escravizados no período pós-abolição no Brasil, instaurado com a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888.

Apesar da promessa do fim da escravidão, especialistas e pesquisadores ressaltam que a medida não provocou uma mudança estrutural, já que a população negra foi colocada à própria sorte, sem acesso a direitos básicos e ascenção social.

Antes mesmo da Lei Áurea, a implementação de leis como Eusébio de Queirós (1850), Lei do Sexagenário (1885) e a Lei do Ventre Livre (1871), que prometiam uma libertação dos negros escravizados, não geraram amparo social efetivo para essa parcela da população.

Segundo a doutoranda em Sociologia e cientista política, Nailah Neves, as leis baseadas na pauta abolicionista eram mais voltadas para um discurso do que para acesso a direitos.

“Na verdade foram leis feitas por um parlamento branco que as escreveu para não serem aplicadas. A Lei do Sexagenário é a que mais escancara esse objetivo, pois com as condições do trabalho escravo praticamente nenhum chegava a essa idade. A Lei do Ventre Livre é outra, a criança teoricamente nascia livre, mas sua mãe ainda era escravizada, então essa criança continuava ali e tinha que ‘pagar’ os gastos com o seu cuidado. Já a Lei Eusébio proibia o tráfico, mas ele continuou, principalmente internamente”, explica.

Nailah também destaca que, mesmo antes da formação de um movimento abolicionista, os negros escravizados já se organizavam em prol da sua própria liberdade.

“É importante dizer que muitos escravizados já estavam livres ou por comprarem a sua liberdade ou por fugirem pros quilombos e que os abolicionistas tentaram leis reais, mas os legisladores que fazem as leis não”, completa a cientista política.

“Leis para prender negros”

Em 1830, o país passou a ter o seu primeiro código penal, que, na teoria, buscava estabelecer normas e punir crimes dentro da sociedade brasileira, que há oito anos havia se tornado um Estado independente. Porém, a legislação escancarou uma série de medidas que determinaram quem era considerado criminoso.

O “Código Criminal do Império”, como era intitulado, destinava penas distintas para os cidadãos livres e os negros escravizados. Enquanto aos cidadãos livres eram destinadas penas como prisão, pagamento de multa, expulsão do Brasil, entre outros, aos escravizados duas penas eram aplicadas com frequência, como a morte e galés – quando os “infratores” eram obrigados a realizar trabalhos públicos forçados e acorrentados uns aos outros.

Além disso, caso a pena para o escravizado fosse a prisão, o Tribunal também poderia converter a punição em açoites, que tinha um limite de 50 por dia. Os açoites eram proibidos para os cidadãos livres e, no caso dos escravizados, caso as chicotadas excedessem o limite diário, a punição poderia ser dividida nos dias seguintes.

Segundo o historiador e pesquisador Henrique Oliveira, o Código Criminal estava fundamentado em leis que criminalizavam e puniam os escravizados em prol da proteção da elite branca escravocrata.

“O Brasil criou uma anomalia para justificar o controle: o escravo, como um ser vendível e comprável no mercado, mas que devia ser punido como uma pessoa. Isso era garantir que o Estado protegesse a elite branca escravocrata contra os escravizados. O grande centro punitivo do código criminal era a população escravizada, tanto que a pena de morte só era aplicada para as pessoas escravizadas que participavam de revoltas”, explica o historiador, autor da dissertação “Os gatunos agem à vontade: polícia, ciência e identificação criminal em Salvador” (1911 a 1922).

Um dos artigos do Código Penal de 1830 também criminalizava as pessoas em situação de vulnerabilidade, àquela época, majoritariamente a população negra. Conhecida como “Lei da Vadiagem”, o artigo 295 determinava prisão com trabalho àqueles que fossem “vadios” ou “mendigos”, definidos como qualquer pessoa sem “uma ocupação honesta e útil”, que não possuem renda ou que viviam em subsistência. A pena para esse crime era de oito dias a um mês.

Até mesmo a capoeira, símbolo de resistência cultural dos africanos escravizados, dentro das leis era considerada crime. Em 1890, dois anos após a assinatura da Lei Áurea, o Código Penal considerava que a “capoeiragem” poderia provocar desordem, ameaça ou temor à ordem social. A pena era prisão de dois a seis meses. A capoeira só deixou de ser crime em 1937, durante o governo de Getúlio Vargas e sob forte mobilização do capoeirista baiano Mestre Bimba.

Segundo Driele Amunã, pedagoga social de rua, redutora de danos e pesquisadora, o Código Penal é compreendido como um instrumento de perpetuação da ideia do corpo preto enquanto descartável e da restrição da vida da população preta, a exemplo da Lei da Vadiagem e da criminalização da capoeira.

“A obrigatoriedade de geração de renda e a criminalização da ‘ociosidade’ são elementos de estratégias da branquitude afim de criminalizar corpos pretos e desconsiderar os resultados de atos racistas que impuseram condições de miséria na vida de uma maioria com direitos minoririzados”, pontua Amunã, que também atua no atendimento e garantia de direitos de pessoas em situação de rua.

capoeira Ilustração Johann Moritz‘Danse de la Guerre’, de 1835 | Ilustração: Johann Moritz

Para Nailah Neves, doutoranda em Sociologia e cientista política, as leis brasileiras tiveram o racismo como base e até hoje geram impactos para a população negra.

“Mesmo após a Abolição este código penal permaneceu e a seletividade penal e os estigmas contra a população negra vêm dessas leis e outras como a de curandeirismo que também foi usada para perseguir as religiões afro-brasileiras. Os estudos sociológico eugenistas vão ‘concluir’ que o negro tem o gene pro crime exatamente porque tinham mais negros presos por causa dessas e outras leis que foram feitas para prender negros”, afirma Neves.

Seletividade, policiamento e racismo

A criminalização da maconha também se tornou uma ferramenta de controle da população negra. Utilizada pelos africanos em ritos religiosos, em celebração à natureza ou em ocasiões especiais, a erva foi um importante elemento de resistência cultural da população negra escravizada.

O Rio de Janeiro, cidade que teve a maior população escravizada do mundo, foi a primeira a criminalizar o uso da maconha com a proibição da venda e uso do “Pito do Pango”, como era chamado o fumo.

Um artigo escrito pelo mestre em ciências penais e advogado da Marcha da Maconha, André Barros, baseado no livro “O Quilombo dos Palmares”, do historiador e etnólogo negro Edison Carneiro, cita um documento datado de outubro de 1830, da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, determinava multa para os comerciantes da maconha e prisão para os consumidores da erva, escravizados ou libertos.

De acordo com pesquisadores, a medicina também teve um papel determinante em associar o racismo e a maconha na construção de sujeitos que teriam conduta para crimes.

Na dissertação “Sonhos da diamba, controles do cotidiano: uma história da criminalização da maconha no Brasil republicano” (2012), do historiador e mestre em História pela Universidade Federal da Bahia, Jorge Emanuel Luz de Souza, a medicina alterou a maconha de um “status de prática cultural” para um “problema social”.

“Primeiro foi considerada um ‘problema médico’ e tornou-se objeto de um discurso condenatório que viu numa ‘origem africana’e no seu uso popular a ‘vingança do vencido’ e um ‘vício degenerativo’ causador de ‘loucura criminosa'”, cita um trecho da pesquisa.

Conforme o historiador Henrique Oliveira, naquele período a medicina também estava preocupada em controlar essas substâncias para produção de remédios, além disso, os escravocratas também tinham uma certa inquietude com a questão produtiva dos escravizados, já que a erva não era uma substância estimulante e impactava na produção.

“A ideia também era impedir que a população negra tivesse direito ao ócio, garantir que os escravos não tivessem tempo disponível para fumar e não ficassem indisponíveis ao trabalho ou relaxados”, explica Oliveira.

Já a pesquisadora Driele Amunã classifica a criminalização da maconha como uma “guerra instaurada era contra corpos pretos, onde vigiar e punir a dignidade dos corpos vulneráveis eram pressupostos de ação”.

“Pensar que um ‘pito de pango’ era mais perigoso que correntes prendendo pessoas e retirando de sua existência a possibilidade de viver em liberdade, exemplifica quais vidas eram e seguem sendo importantes em um contexto social de manutenção da vida”, comenta Driele Amunã.

Com a criminalização da existência e cultura da população negra nas leis brasileiras, também foi preciso a criação de uma instituição de controle para punir os escravizados e proteger a vida e propriedade dos escravocratas, as forças policiais.

Um levantamento feito pela Alma Preta Jornalismo aponta que mais de 80% das polícias militares foram fundadas no período da escravidão. A atuação policial tinha como principal finalidade conter levantes e rebeliões organizadas pela população negra.

Painting by Augustus Earle depicting an illegal capoeira-like game in Rio de JaneiroCapoeira, c. 1820. Biblioteca Nacional de Canberra«Negroes Fighting» Augustus Earle (1793-1838). 1822 Ilustração: Augustus Earle (1820)/ Biblioteca Nacional de Canberra

De acordo com o historiador Henrique Oliveira, a lógica policial foi direcionada para garantir os privilégios da população branca em detrimento da população negra.

“A polícia atua para garantir que o patrimônio, a riqueza, esteja na mão dos brancos e suspeita que o patrimônio na mão de negros é de origem ilícita […] Então o policial acaba atuando nessa lógica que no Brasil brancos e negros são diferentes e desiguais. O policial acaba sabendo contra quem ele pode atuar, contra quem a sua ação é exitosa”, comenta.

“Seletividade, policiamento e racismo são uma mesma coisa. Não dá para separar uma coisa da outra”, completa o historiador.

A pesquisadora e pedagoga Driele Amunã destaca os impactos do modelo de segurança pública para a população negra até os dias atuais. “Um modelo pensado em uma sociedade escravocrata onde as expressões populares pensadas e criadas por pessoas pretas eram consideradas enquanto crime, um modelo repressivo que até hoje segue enxergando nos ambientes vulneráveis espaços onde em ações policiais, a bala chega antes da palavra”, comenta Driele Amunã.

A pesquisadora também ressalta que as pessoas em situação de rua, majoritariamente a população negra, são fruto de um processo de exclusão de direitos e silenciamentos históricos.

“O imaginário social se acostuma com uma pessoa preta na rua e privada de seus direitos que são estabelecidos por lei. Essa mesma sociedade é quem grita em plenos pulmões que ‘basta querer’ que se vence na vida. É importante ter consciência que a sociedade atual é ancorada em pressupostos coloniais e racistas. Não podemos esquecer e deixar de criar rasuras”, finaliza.

Leia também: Novembro Negro: conheça a trajetória de Zumbi dos Palmares

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