Por volta das 20h de 11 de agosto de 2022, o comerciante Raul Andrade*, de 43 anos, parou para lanchar em uma unidade do Habib’s no Tucuruvi, zona norte de São Paulo.
Apressado, deixou o carro com as janelas da frente abertas aos cuidados de Rafael Fagundes Silva, um flanelinha que trabalhava na região.
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De volta ao veículo, rumo a sua casa, Raul deu falta de seu celular, um Samsung A32, que custava cerca de R$ 2.300 na época.
Como não havia sinais de arrombamento no carro, Raul suspeitou do flanelinha. Por isso, já na manhã do dia seguinte, pediu a um funcionário da lanchonete que verificasse as gravações das câmeras de segurança naquele horário.
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Pronto: as imagens comprovaram sua desconfiança: o flanelinha, pela janela aberta, furtou seu smartphone.
Raul decidiu, ainda no mesmo dia, formalizar a denúncia por meio da delegacia eletrônica. Mas seu boletim de ocorrência foi indeferido, ou seja, não foi aceito pela delegacia.
Justiça com as próprias mãos
Indignado, pediu ajuda a um primo, o policial aposentado Adamastor Alves* para resolver aquela situação.
Os dois voltaram ao estacionamento do Habib’s na noite desse mesmo 12 de novembro para tentar encontrar Rafael. E conseguiram.
Não se sabe o que foi dito nem o tom da conversa, mas os dois homens fizeram uma “entrevista informal” com o flanelinha e conseguiram sua confissão e o celular de volta.
Rafael havia escondido o aparelho em um canteiro próximo à lanchonete.
“Eu achei o aparelho caído no chão”, teria dito Rafael ao comerciante e seu primo.
Com o flanelinha “detido”, Raul ligou para o 190 e aguardou a polícia chegar para, finalmente, concretizar o boletim de ocorrência do furto pessoalmente, na 73ª Delegacia de Polícia do Jaçanã.
Rafael foi preso em flagrante e indiciado por furto simples.
O curioso é que Raul é um comerciante e, mesmo assim, a Polícia registrou a denúncia como se fosse de um integrante da Polícia Militar.
Síntese da segurança privada no Brasil
Cléber Lopes, professor de Ciência Política e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança (LEGS) da Universidade Estadual de Londrina (UEL), avalia esse caso como um exemplo que ilustra bem as complexidades nas relações entre a segurança privada e a segurança pública.
Ali se notam também as tensões e os acordos entre a formalidade e informalidade do mercado de segurança como um todo.
“Esse caso permite a gente entender como é que a segurança é promovida no Brasil. Há uma pluralidade de atores formais e informais, e conta com a participação de policiais atuando oficialmente ou extra-oficialmente”, descreve Lopes.
A reportagem questionou o Habib’s sobre mudanças na política de segurança, mas a empresa não respondeu até a publicação desta reportagem. O espaço continua aberto para a resposta.
Alta demanda por segurança
Tudo começa com a insegurança que existe no Brasil. Não só Raul, mas pelo menos 10% dos brasileiros tiveram seu smartphone roubado ou furtado entre 2023 e 2024, segundo o Datafolha.
Só nos primeiros quatro meses deste ano, o estado de São Paulo registrou 17.536 furtos e 4.437 roubos de carros, uma média de 181 ocorrências por dia, segundo levantamento do Grupo Tracker, de rastreamento de veículos, e da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (Fecap).
Assim, esse medo cria “mercados de proteção”, que exploram esse receio de ter o celular, o carro ou qualquer outro patrimônio roubado.
“O Brasil é uma sociedade com alta taxa de vitimização e com muita insegurança. Então, há a possibilidade de as pessoas lucrarem com isso”, avalia o professor da UEL.
E o flanelinha é a parte mais “precária, informalizada e invisível” desse mercado de proteção.
“É um mercado tão problemático, que ele está nessa zona cinza entre o que é, de fato, um mercado, que supõe relações livres entre demanda e oferta, e o que é extorsão. Ou seja, se não paga o flanelinha, a pessoa tem medo do que ele pode fazer”, explica Lopes.
Outro exemplo semelhante, ainda que mais organizado, são as milícias de guardas civis metropolitanos que cobravam pela segurança privada de 12 ruas no Centro de São Paulo. O Ministério Público denunciou o caso em agosto deste ano.
A falta de limites entre segurança pública e privada
A história do flanelinha mostra que não existe separação clara entre segurança pública e segurança privada no Brasil, afirma Lopes.
“Esse caso mostra a maneira como segurança pública e segurança privada convivem, ora se acomodando, ora com tensões”.
Primeiro, a vítima acessa os circuitos internos de TV da loja e busca o Estado para registrar o boletim de ocorrência, mas se frustra.
Diante da incapacidade do Estado em responder às demandas de segurança, ela recorre a outros meios para resolver seus problemas.
Lopes pontua que esses agentes alternativos de segurança podem ser criminosos ou os próprios policiais atuando de forma oficial ou extraoficial.
“Eles são vistos como detentores de ‘poderes mágicos’ no que diz respeito à resolução de problemas de segurança”, define Lopes.
Raul é um exemplo de como a vítima busca a polícia extraoficialmente e tenta fazer justiça com as próprias mãos, avalia o pesquisador.
Quando ele aciona o Estado novamente para o registro do boletim de ocorrência, o policial mostra novamente seus “poderes mágicos”. O caso é tratado como uma “situação de público interno”, como se o policial, que apoiou extraoficialmente, fosse a própria vítima.
“Isso remete a essa ideia da polícia como uma família estendida, que mesmo quando as pessoas deixam de fazer parte da polícia, elas continuam a fazer parte da polícia”, afirma Lopes.
Mercado de segurança sem regulação adequada
Para Lopes, o Estado tem baixa capacidade de regular e controlar esses conflitos do dia-a-dia. Além disso, ainda não criou uma lei que regule especificamente a atividade de segurança que se faz em vias públicas.
“A gente acabou de ter a aprovação do Estatuto da Segurança Privada, mas a segurança que se faz em vias públicas ainda não é uma atividade de segurança privada segundo a legislação”, afirma o especialista.
“E precisaria regular, porque essa atividade é amplamente disseminada, não só em São Paulo, mas no Brasil inteiro”, completa Lopes.
*A Alma Preta decidiu usar nomes fictícios neste caso para não expor os envolvidos na história.