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Pandemia e falta de estrutura prejudicam quilombolas na preparação para o Enem

9 de junho de 2020

Serviço de internet deficiente, trabalho extra na roça e o racismo são barreiras a mais para os jovens quilombolas que buscam ingresso no ensino superior

Texto: Flávia Ribeiro | Edição: Nataly Simões | Imagem: Divulgação

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Há um descompasso entre a mensagem “Estude de qualquer maneira e de qualquer lugar” na propaganda do governo federal a respeito do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que mostra imagens de jovens com quartos confortáveis, e a realidade de muitas pessoas no Brasil. Um exemplo disso são os jovens quilombolas entrevistados pelo Alma Preta. A entrevista, feita via WhatsApp, demorou mais de uma semana para ser concluída por razões como instabilidade no serviço de internet.

Uenemma das vezes em que a reportagem conversou com Juliana da Silva Vaz, do Quilombo Araçá/Cariaçá, em Bom Jesus da Lapa, na Bahia, a internet foi interrompida e só voltou no outro dia. Às vezes, ela só consegue sinal de internet em cima de uma árvore, mas a situação já foi pior. “Essa é a nossa realidade e até melhorou porque não havia sinal. Nos outros anos, tínhamos que ir para a cidade para uma e passávamos por várias humilhações. Eu nem gosto de lembrar. Isso só para fazer a inscrição, ainda tem toda a preparação para a prova. No primeiro ano, eu estudava em um livro chamado globalizado. Só que a gente não tinha orientação alguma e não sabíamos nem por onde começar a nos preparar. Depois, não sabíamos o que fazer após o Enem, o que fazer para acessar os cursos, essa informação não chegava aqui”, relata Juliana, que já está no sétimo ano de Serviço Social, mas vai tentar o Enem de novo.

 A possibilidade de uma prova virtual é algo que prejudicaria muito os quilombolas. “É algo completamente fora da nossa realidade. É a certeza de que mais uma vez seremos excluídos, principalmente por causa do acesso à internet”, complementa.

A jovem fala que a pandemia da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, teve repercussão direta na preparação dos estudantes. Em 2019, os quilombolas conseguiram formar um grupo de estudos, mas neste ano estão estudando individualmente. Há um grupo virtual com mais de 30 estudantes e a maioria está com dificuldades em estudar por várias razões.

“A ansiedade decorrente do medo de sermos contaminados tem nos tirado o sono e não conseguimos nos concentrar. Ainda há o desemprego, e nem sempre conseguimos manter as três refeições diárias, tendo que aumentar o trabalho braçal nas plantações para garantir o sustento e isso diminui as horas de estudo”, conta. Tanto Juliana, quanto outras pessoas da comunidade tentaram acessar o Auxílio Emergencial, benefício concedido pelo governo federal durante a pandemia, mas não saíram da fase de análise.

Juliana não é a primeira da família a conseguir uma vaga na educação superior. Uma irmã iniciou a graduação, mas não terminou o curso porque o racismo se faz mais pesado entre quilombolas. “Ela foi selecionada para Arquitetura. Saiu de Bom Jesus da Lapa para Salvador, porque entendemos que só a educação transforma. Foi sem saber onde ir, o que comer, onde dormir. Passou por vários obstáculos, mas infelizmente não conseguiu permanecer muito tempo”, diz.

“Ela se apresentou falando que era quilombola, do interior da Bahia e o professor perguntou se ela estava no lugar certo. Ele disse que ‘infelizmente o Brasil era um país de todos’. A partir daquele dia, os olhares e tratamentos dos colegas e de outros professores tinham resquícios da fala daquele professor. Ele até disse que quilombola era para fazer Agronomia ou Veterinária para mexer com bicho e com mato. Era muita humilhação e um tratamento muito desumano. Ela teve que escolher entre a saúde mental e o sonho de ser arquiteta”, recorda a jovem, que confessa não estar preparada para a prova.

“É importante o nosso povo se apropriar desse espaço de conhecimento, que também é nosso por direito”

WhatsApp Image 2020 06 09 at 11.15.25A sensação de desamparo também é conhecida por Josiléia dos Santos do Nascimento, do Quilombo São Cristóvão, no Espírito Santo. “Não me considero preparada, até porque nós não estamos apenas estudando, também trabalhamos muito nas nossas roças. Na maioria das vezes chegamos muito cansados e só temos o final de semana para estudar”, comenta.

O distanciamento social, como medida de prevenção à Covid-19, também atrapalhou. “Antes da pandemia, nos reuníamos com minhas primas para estudar, com alguns livros do ensino médio e na internet. Estávamos lançando as propostas para os jovens da comunidade estudarem juntos pelo menos uma vez por mês, mas não foi possível devido ao coronavírus. Bão temos mais como fazer esse movimento e estudamos somente em casa”, explica.

O serviço de internet não é um problema no território, mas há outros obstáculos que foram amplificados neste momento de crise sanitária. “Até o momento só eu e uma prima fizemos a inscrição. Sinto preocupação com o desinteresse ou desânimo dos jovens quilombolas em participar do Enem. Alegam que não conseguirão passar e nem vão tentar. A falta de autoestima é grande aqui”, desabafa Josileia.

Para ela, que já concluiu o ensino superior, é importante incentivar os jovens quilombolas da comunidade a prestarem o Enem. “É importante o nosso povo se apropriar desse espaço de conhecimento que também é nosso por direito. Quando entrei na universidade para fazer o curso de educação do campo, comecei a entender que era necessário que nós estudássemos para retornar à base e dizer aos nossos a importância dos conhecimentos que adquirimos e maior ainda a importância dos saberes, que construímos e que nos foi transmitido como herança. E em qualquer espaço que estivermos reafirmando quem somos e para que viemos”, analisa.

* Imagens internas: acervo pessoal

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