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Para polícia do Rio, o elemento suspeito tem ‘bigodinho fininho e cabelinho na régua’

Estudo inédito revela que na cidade do Rio de Janeiro pessoas negras representam 63% dos abordados pela polícia, sendo que 17% já chegaram a ser paradas mais de dez vezes

Foto mostra um carro de polícia e ilustra texto sobre abordagem policial.

Foto: Imagem: Diego Parra/Pixabay

15 de fevereiro de 2022

Na cidade do Rio de Janeiro, as pessoas negras são as mais abordadas em todas as situações em que há uma operação policial. É o que aponta a 2° edição da pesquisa Elemento Suspeito, intitulada ‘Negro trauma: racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro’ e coordenada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).

Depois de quase 20 anos de sua primeira realização, em 2003, a pesquisa inédita comprova como jovens negros são os principais alvos de agentes de segurança e como o racismo está atrelado à abordagem e atividade policial. Chega a 63% o percentual de pessoas negras abordadas pela polícia, sendo que 17% dessas pessoas já passaram pela experiência de serem paradas mais de dez vezes. O número se revela desproporcional em comparação com o percentual de 48% da população negra na cidade carioca.

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De acordo com Pedro Paulo da Silva, pesquisador do CESeC e coordenador de pesquisa do LabJaca (Laboratório de dados e narrativas sobre favelas e periferias do Jacarezinho), foi possível constatar que, em comparação com a edição de 2003, houve um aumento no uso de intimidação e ameaça em abordagens policiais e também o aumento no uso de armas durante essas operações.

Em comparação com 2003, as abordagens passaram de 6,5% para 23% e o uso de armas apontadas para os abordados foi de 9,7% para 28% na pesquisa atual. “A gente também conseguiu observar agora novas modalidades de abordagem policial. Por exemplo, em 2003, a gente não tinha ainda empresas de aplicativos de transporte e hoje a gente já vê que as pessoas negras também são as mais abordadas nessa modalidade. Além disso, outra modalidade é a revista de celulares que não havia em 2003 devido a não massificação de celulares”, explica Silva.

Elemento suspeito: ‘bigodinho fininho e cabelinho na régua’

O estudo revela como as ações policiais são acentuadas por idade, gênero, cor, classe e território, o que cria um padrão típico de abordagens e revela uma característica do que é considerado um elemento suspeito do ponto de vista policial. Entre as pessoas que foram paradas mais de dez vezes, 94% eram homens, 66% eram negros, 50% tinham até 40 anos, 35% moravam em favelas, 33% eram de periferias e 56% ganhavam até três salários mínimos.

De acordo com o pesquisador Pedro Paulo da Silva, os dados revelam como os policiais associam uma estética de pessoas de periferias e favelas ligadas à criminalidade. No grupo focal da pesquisa que foi feita com os policiais, foi relatado que o elemento suspeito seria a pessoa com “bigodinho fininho e loirinho, cabelo com pintinha amarelinha, blusa do Flamengo, boné…”.

“São pessoas pobres, periféricas, pretas, homens e jovens que são os mais abordados. Então, a gente vê que o elemento suspeito é uma representação da estética negra, favelada e jovem. Em 2003, a gente via a mesma coisa em termos de idade, sexo, cor, teritório e renda, só que o ‘bigodinho fininho e cabelinho na régua é uma construção contemporânea. Então o que quero dizer é que o racismo estava presente em 2003, está presente hoje, mas a forma como esse racismo aparece é diferente”, explica o pesquisador Pedro Paulo da Silva.

O estudo também revela que atividades comuns para pessoas brancas são vistas como suspeitas para pessoas negras, que são 68% das abordadas andando a pé na rua ou na praia, 74% em vans ou kombis, 72% nos carros de aplicativos, 71% no transporte público, 68% andando de moto e 67% em um evento ou festa.

De acordo com o levantamento, a revista corporal realizada nessas abordagens também é, muitas vezes, um procedimento agressivo e invasivo em que o abordado é humilhado e/ou constrangido. Entre os participantes da pesquisa, 50% sofreu revista física e, entre eles, 84% eram homens, 69% eram negros e 70% eram moradores de favelas e bairros de periferia.

As mulheres cis e trans (16%), apesar de serem menos abordadas do que os homens (84%) relatam passar por intimidações e terem suas bolsas revistadas com os pertences espalhados e, algumas vezes, tendo até seus cabelos revistados.

De acordo com Wallace Corbo, advogado e doutor em direito público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), hoje as polícias no Rio de Janeiro não têm um protocolo público sobre a sua atuação, o que torna difícil dizer o quanto as abordagens feitas violam protocolos da polícia.

“O grande problema é exatamente o fato de que na ausência de regras, de protocolos claros que determinem que pessoas podem ser paradas e em que situações elas podem ser paradas, a polícia acaba dando vazão não só para a violência que marca a atuação policial no Rio, que é extremamente violenta, como também para o racismo e para a arbitrariedade na atuação policial, que acaba sempre atingindo a população preta, jovem, masculina e pobre no Rio de Janeiro”, explica o advogado.

Para além da abordagem policial, a pesquisa revela que, entre os entrevistados, negros são 70% dos que presenciaram a polícia agredindo pessoas, 79% dos que tiveram suas casas invadidas e 74% dos que tiveram um parente ou amigo morto pela polícia. 

Dimensão traumática dessas abordagens

De acordo com o estudo, toda a violência gerada nas abordagens e operações policiais gera também uma dimensão traumática nos indivíduos abordados que acaba por acompanhá-los ao longo da vida.

“A maior parte das pessoas negras, quando a gente perguntou em grupo focal, disse que tem medo da polícia, disse que muda a sua linguagem quando está falando com a polícia e que anda de forma diferente. Isso tudo é efeito de uma coisa traumática. Então, a experiência com a violência é tão profunda e está tão entranhada na população negra, que a gente pensa qual é a roupa que vai usar, como é que vai sair e qual é o caminho que vai passar por conta da polícia”, explica o pesquisador.

O advogado Wallace Corbo também explica que atualmente existem dois controles da polícia no sentido de que a população possa denunciar casos de abordagens violentas e indevidas. Segundo ele, há um controle interno que é feito pelas ouvidorias das polícias e há um controle externo da atividade policial que é realizado pelo Ministério Público.

“Hoje, qualquer cidadão que esteja sujeito a alguma arbitrariedade policial pode buscar esses dois caminhos. O problema é que as ouvidorias das polícias não têm funcionado suficientemente, até porque a polícia do estado do RJ, como um todo, atua em uma lógica de se auto-legitimar e de se proteger. Então, o cidadão apesar de poder buscar o controle interno com as ouvidorias, nunca ou em geral não vai receber uma proteção relevante”, explica.

Além disso, o advogado pontua que há um medo dessa população também em denunciar esses casos e de sofrer alguma represália. “O Ministério Público do Estado do RJ também não tem atuado de maneira relevante nesse controle externo, então, são poucas as notícias que nós temos de investigações que não são arquivadas, que efetivamente tem prosseguimento no MP e que digam respeito a arbitrariedades policiais de novo em operações ou no cotidiano. Na prática apesar de ter, em tese, duas vias que ele pode buscar pra reportar arbitrariedades, na prática essas duas vias estão obstruídas”, finaliza o advogado.

Leia também: Rio de Janeiro: em 2021, três a cada quatro chacinas aconteceram durante operações policiais

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