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Pressão para passar em concursos públicos afeta saúde mental de pessoas negras

Busca por um cargo público representa estabilidade financeira principalmente para a população negra
Imagem mostra duas mulheres negras com expressão de preocupação, estudando para concursos públicos.

Foto: Imagem: Alma Preta Jornalismo

18 de maio de 2023

“Passei por meses de estresse e pressão estudando para o concurso público. Desenvolvi ansiedade e quando passei, sequer conseguia comemorar. O processo é tão desgastante que a estabilidade do cargo não compensou o trauma”. O relato é da escrevente técnica judiciária Patrícia Costa, de 34 anos, moradora de Cotia (SP), concursada desde 2017.

De acordo com informações do governo federal, o Brasil conta com uma média de 560 mil servidores públicos. Com editais abertos em todo o país, a busca por um cargo público representa estabilidade financeira, mas há quem diga que a rotina de estudos para passar nos concursos exige muito dos candidatos, o que pode resultar em danos à saúde mental. A situação se agrava quando o candidato à vaga disputada é negro.

A professora particular de matemática Maria do Carmo Feijó, de 67 anos, afirma que é muito diferente a abordagem de ensino para os alunos negros e brancos. No caso da parcela negra, há mais do que a pressão de passar: a vaga representa a ascensão profissional e o fim das necessidades básicas para toda a família.

“É a prova da vida deles [negros]. Eu percebo que o empenho para acertar cada exercício chega a ser excruciante para os estudantes negros, principalmente quem vive em uma situação precária. Já vi crises de choro por não aprender, tremedeira, falta de ar. Para quem veio do pouco, não há possibilidade de errar”, diz a professora.

Maria do Carmo leciona em sua casa para todas as idades – do reforço de matemática básica até a preparação para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médico) e concursos públicos. Para ela, mais do que a pressão da prova, os estudantes precisam lidar com o medo de não passar e, dessa forma, decepcionar a família.

“As histórias são parecidas. Normalmente, é um filho de mãe-solo, que tem um irmão que já cometeu erros, como envolvimento com o crime, gravidez na adolescência ou uso de drogas. Então, para esse estudante, não sobra espaço para erro. Ele precisa dar orgulho à mãe e garantir o sustento da casa”, descreve a docente.

Família e saúde mental

A psicóloga clínica Ana Maria Carvalho explica que a longo prazo a pressão para passar em concursos públicos, de fato, causa danos emocionais, principalmente nas pessoas negras.

“A ansiedade tem várias fatias e pode atrapalhar a rotina dessas pessoas mesmo que elas passem no concurso. A situação se agrava ainda mais quando a pessoa não passa. A autoestima e a visão de si mesmo se distorcem, levando à depressão e a outros problemas, mesmo que existam outros concursos”, analisa a profissional.

Patrícia Costa diz que foram necessários dois anos de estudo para passar na prova para escrevente técnico judiciário. Ela já havia tentado ingressar na Polícia Militar, mas não passou, o que gerou mais pressão e mais medo de fracassar.

“Minha mãe sempre dizia que não queria o destino dela para mim. Ela desenvolveu problemas nas mãos de tanto costurar. Minha irmã engravidou aos 13 anos, então ela dizia ‘Patrícia, eu só tenho você’. Isso me causava uma ansiedade enorme, eu sentia que não podia decepcioná-la depois de tanto sacrifício que ela fez por nós”, lamenta.

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O que acontece com a mente sob a pressão dos estudos?

“No começo, a pessoa não consegue identificar que existe um problema de saúde ali. Soma-se isso à jornada dupla ou tripla de trabalho e estudo, dificuldades financeiras e medo do amanhã, a saúde emocional acaba por escapar pelas mãos de quem já desenvolveu o transtorno de ansiedade”, destaca a psicóloga ouvida pela reportagem.

Ana Maria salienta que a ansiedade não se trata de um estado permanente, mas sim uma sensação de alerta para situações de risco. “Logo, a ansiedade contínua afeta a produtividade, o que para quem estuda é um pesadelo, pois a pessoa não consegue ter paz”, complementa.

Patrícia relata que sua ansiedade chegou a tal ponto que ela precisou ser hospitalizada. Segundo a servidora pública, às vésperas do concurso da Polícia Militar, ela começou a sentir muita dor no peito e falta de ar. Com medo de perder a prova, ela foi ao hospital, onde ficou em observação a noite toda.

“Eu só ficava pensando que não estudei o bastante, que não consegui ler tudo. Eu levei uma apostila para o hospital e chegando lá não consegui ler. Minha pressão estava 24/14 e disseram que era uma crise de ansiedade. Meu medo era não conseguir chegar a tempo da prova e, por fim, foi um fracasso. Nunca vou esquecer o rosto de decepção da minha mãe”, desabafa.

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A psicóloga clínica Ana Maria Carvalho avalia que a mente de uma pessoa submetida a longos períodos de estresse pode colapsar. De acordo com a profissional, o acolhimento profissional nessas horas é fundamental.

“A psicologia deve abranger as questões sociais também, pois a realidade é diferente de uma pessoa que entra em crise pela pressão de passar em qualquer um dos tantos concursos, mas tem casa, comida e outra chance, do que é para uma pessoa negra, mantenedora do lar, que vê nos concursos públicos uma oportunidade de comer bem”, descreve.

“A voz interna vai sempre dizer que essa pessoa deveria ter feito melhor, então, o papel do psicólogo nesses casos é de redução de danos, para que essa pessoa – que já está no seu limite – encontre um espaço para respirar”, conclui.

“Vivo em constante estresse”, diz PM

Felipe*, de 27 anos, passou no concurso para a Polícia Militar de São Paulo em 2018. Com pai militar aposentado, para ele nunca houve margem para escolher outra profissão. Criado pelo pai e pela avó paterna, o policial conta que seu pai sempre foi muito rígido, o que piorou quando seus dois irmãos mais velhos saíram de casa para seguir outra carreira. A mãe de Felipe morreu quando ele tinha apenas sete anos.

“Por um lado eu entendo o meu pai. A PM mudou a vida dele, fez com que ele conquistasse casa, carro e melhorasse a situação da minha avó. Mas eu nunca quis isso para mim. Para ele [pai] é motivo de muita vergonha meus irmãos terem ido por outro caminho. Um para a vida de pular de emprego em emprego e o outro vende café da manhã na porta do metrô”, relata.

O PM diz que a situação de cobrança do pai piorou quando ele descobri a orientação sexual de Felipe. “Meu pai fala até hoje que pelo menos eu não sou um gay desocupado, mas na época que eu estava estudando para os concursos minha vida era um verdadeiro inferno”, lembra.

“Meu pai dizia ‘já não basta você ter nascido preto, você ainda quer ser viado? Então pelo menos uma profissão de homem você vai ter’. Com isso, eu era obrigado a estudar 14 horas por dia para os concursos e hoje eu colho os frutos de tanto desgaste”, detalha.

Futuro em outra carreira

Felipe revela que pretende sair da Polícia Militar assim que for possível. Diagnosticado com Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG), ele precisa de medicamentos para ter qualidade de vida minimamente e as crises de pânico ainda fazem parte de sua rotina.

“Tudo que eu vejo nos jornais é que os policiais que mais morrem são os negros. Os homossexuais que mais morrem são negros. Os homens negros morrem mais. E eu estou inserido em um contexto tão machista e homofóbico que tenho medo dos meus próprios colegas de trabalho tentarem me matar se descobrirem que sou gay. Vivo em constante estresse e medo”, desabafa.

O agente de segurança pública acrescenta que o trabalho como PM é estressante por si só devido aos riscos diários. “Ainda mais quando você está numa profissão que odeia, fingindo ser o que não é e com medo de ser morto por isso. Eu ando armado e não sou estável”, complementa.

Patrícia também planeja deixar o cargo de servidora pública até 2025,  ano em que ela termina a faculdade de Engenharia de Produção. Até lá, ela diz que pretende conversar com sua mãe e torce por acolhimento.

“Eu sei que muita gente acha que estabilidade financeira é tudo, e realmente é importante. Mas sem saúde a gente não faz nada. Espero que a minha mãe compreenda minha decisão e apoie essa nova carreira que quero seguir”, afirma.

  • Caroline Nunes

    Jornalista, pós-graduada em Linguística, com MBA em Comunicação e Marketing. Candomblecista, membro da diretoria de ONG que protege mulheres caiçaras, escreve sobre violência de gênero, religiões de matriz africana e comportamento.

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