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Como é ser avó de crianças pretas no Brasil?

Em meio à escassez, netas destacam como suas avós foram importantes na sua construção de caráter e de saberes; “independentemente de xaropes, chás e rezas, ela nos curava, pois tudo isso ainda tinha o toque de muito amor”

 

Foto mostra uma senhora negra, de lenço na cabeça.

Foto: Foto mostra uma senhora negra, de lenço na cabeça.

11 de abril de 2022

Dengo, conselhos, comida caseira e remédios naturais: todas essas coisas são lembranças valiosas de mulheres que foram criadas pelas avós. Pelos mais diferentes motivos, como abandono parental, morte ou até mesmo quando os pais precisam trabalhar para garantir o sustento da casa, cerca de 100 mil brasileiros tiveram suas criações destinadas a essas senhoras, segundo uma pesquisa elaborada pelo Instituto Kantar.

Para mulheres negras que passaram por esse processo, a referência feminina e a potência de saberes adquiridos pela experiência de vida das avós é parte fundamental de suas respectivas construções como indivíduos no mundo. Independência, força de vontade e garra são características marcantes dessa criação. É o que conta a corretora de planos de saúde Sabrina Saturnino, moradora de Guaianases, em São Paulo.

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“Por minha avó ser muito guerreira, ela sempre mostrou o valor de uma mulher ser independente. Hoje eu sou mãe e passo o mesmo valor para meus filhos. Mulher tem que ser livre e pode estar onde ela quiser, ainda mais sendo uma mulher negra. Lutar pelos nossos direitos e se empoderar é muito importante”, comenta.

Neta de dona Nair Marques, a criação de Sabrina foi designada para sua avó paterna devido à morte de seu pai, que sofreu um acidente de carro quando a corretora tinha apenas dois anos de idade. Ela conta que sua mãe não possuía condições financeiras e psicológicas para cuidar dos filhos, e passou a guarda dela e do irmão – que na época tinha apenas 9 meses – para sua avó. “Assim vivemos juntos, mas minha mãe não era presente”, completa.

Dona Nair, avó responsável pela criação da corretora Sabrina Saturnino | Créditos: Acervo PessoalDona Nair, avó responsável pela criação da corretora Sabrina Saturnino | Créditos: Acervo Pessoal

Lembranças

“Lembro de cuidar dos cabelos e unhas de minha avó, a gente disputando a máquina de costura, ela me ensinando as tarefas domésticas e até as brigas por igualdade, pois minha avó era muito machista”. É o que diz a líder de montagem Ângela Maria da Silva.

Criada pela avó devido ao abandono parental, Ângela comenta que seus pais eram muito jovens e inexperientes. Com a separação, “resolveram seguir caminhos diferentes, sem a companhia dos filhos”, relembra.

Dona Francelina Alves, avó paterna, resolveu então cuidar dos três filhos mais velhos do casal. Apesar de todas as lembranças boas, Ângela ressalta que sua avó exercia uma liderança rígida dentro de casa, para que os netos tivessem uma boa educação. Porém, e, apesar da rigidez relatada pela líder de montagem, afeto e respeito são marcas que remetem à criação de dona Francelina.

“A convivência com ela era complexa, pois minha avó possuía uma personalidade forte e, devido às dificuldades impostas pela vida, ela se tornou uma pessoa introspectiva. Apesar disso, era carinhosa à sua maneira. Ela era uma pessoa inteligente, corajosa e não desistia quando surgiam problemas”, avalia.

Segundo ela, o tratamento entre os netos homens e mulheres era diferente, o que às vezes trazia atritos para o lar. Todavia, Ângela salienta que de certa forma Dona Francelina a respeitava, mesmo com a divergência de opiniões.

“Nesse tipo de situação [machista], ela não me censurava. Apenas dizia que eu ‘deveria ter nascido homem’. Acredito que ela – de maneira muito discreta — admirava a minha atitude em confrontá-la e exigir igualdade de direitos. Sem falar abertamente, através de exemplos, ela me ensinou a ser corajosa e ter empatia”, destaca.

A escolha entre a convivência com os filhos e o trabalho

Dona Lia da Silva é costureira e mora na região periférica de Guarulhos. Aos 71 anos, e responsável pela criação de oito dos 12 netos, ela conta que a tarefa de cuidar dos filhos de suas filhas nunca foi fácil, mas que a convivência com eles lhe traz ânimo de vida. Maria, Ana Paula e Francielly são mães solo, e confiaram a criação de seus filhos à sua mãe, enquanto tentam a vida como garçonetes e faxineiras em cruzeiros marítimos.

“A minha mais velha [Maria] conseguiu o emprego e levou as outras duas. Daí, acabou que minha casa encheu de criança!”, ri Dona Lia.

“Elas precisavam trabalhar para dar uma condição melhor para os filhos delas. Elas [filhas] ficam meses no mar e eu fico com eles [netos] aqui. Criei mulheres guerreiras, que não têm medo de trabalhar. É duro o serviço delas, mas proporciona coisas boas para os meus netos, como cursos de inglês, comida no prato e remédio, quando precisam. Então, elas escolheram poder dar para eles o que eu não pude dar a elas”, completa.

Maria, Ana Paula e Francielly fazem parte da estatística mostrada pela pesquisa do Instituto Kantar. A análise mostra que 41% das crianças são criadas pela avó para que suas mães possam trabalhar.

“Eu sei que elas [as filhas] sofrem e sentem saudades porque são boas mães. Mas pior seria se elas não conseguissem emprego, não é? A gente que é mulher, principalmente se for preta e de origem pobre, vive fazendo escolhas difíceis. É assim desde que o mundo é mundo”, pondera Dona Lia.

Ensinamentos em meio à escassez

“Lembro das vezes que a gente pegava um ônibus apenas para passear. Como não havia condições de ir para um shopping, um parque, pegávamos um ônibus sem rumo. Íamos vendo os lugares passando, e eu deitada em seu colo e ela fazendo aquele cafuné em minha cabeça, contando histórias que até então achava ser apenas histórias, mas não. Eram as realidades da vida… E assim a gente seguia, até o ponto final e voltava”, compartilha Ana Paula Garcia da Silva.

A auxiliar administrativa e professora também foi criada por sua avó. Quando ela tinha apenas três anos, sua mãe foi assassinada. Ana e seus dois irmãos então passaram a morar com dona Ivonne.

“Meu pai biológico, que era apenas o meu, sumiu após o falecimento da minha mãe. E, independente disso, a minha avó jamais abriria mão da gente, pois já era totalmente presente antes mesmo do falecimento de minha mãe”, comenta.

Dona Ivonne, avó de Ana Paula Garcia | Créditos: Acervo PessoalDona Ivonne, avó de Ana Paula Garcia | Créditos: Acervo Pessoal

Ana descreve dona Ivonne como seu espelho. Mesmo em meio à escassez financeira – pois sua avó era a única responsável pelo sustento dos netos – ela passou seus valores às crianças que educou, ato que Ana tenta repetir na criação de seus próprios filhos.

“Mediante a todas as dificuldades, que foram muitas, ela nunca desistiu da gente. Ela poderia ficar sem comer, mas a gente jamais. Sempre me ensinou sobre respeitar as pessoas, ser honesta, e ser uma mulher independente. Ela se separou do meu avô muito cedo, logo, sempre se virou sozinha e mostrava que nós, mulheres, somos fortes e temos que ser independentes”, relembra.

“Fui aprendendo o legado que ela queria deixar. Se hoje sou a mulher que sou, é por conta da base inicial que eu tive. Batalhar sempre pelo melhor. E quando eu chegar no patamar que almejo, será mais um orgulho pra ela, mesmo não estando mais em vida”, completa.

Ângela, por sua vez, conta que sua avó lhe ensinou muitas lições, principalmente relacionadas a caráter e honestidade.

“A minha avó foi a figura mais importante na minha formação, pois diferentemente das avós que conhecemos, ela não me mimou. Ela sempre foi rígida e exigente em relação à minha educação e me mostrou que eu tinha que tornar uma mulher de bom caráter”, destaca.

Comidas e remédios feitos com amor

“Eu distraio os menores [de 4, 6 e 7 anos] da saudade da mãe pelo estômago, viu? Esse tanto de criança come bem e de tudo, são saudáveis, tomaram todas as vacinas. E eu sei que eles me amam do jeito que eu os amo. Quando eu não estiver mais aqui, tenho certeza que eles vão lembrar dessa ‘negra velha’ com carinho”, comenta Dona Lia, responsável pelos oito netos.

A crença em remédios utilizados pelos antigos – como administrar mel para criança com tosse – é marca na casa de Dona Lia, mas também fez parte da criação de Ângela Maria.

“Ela [avó], ao seu modo, acreditava que qualquer tipo de dor ou doenças leves podiam ser resolvidas com ‘banha de galinha’ ou ‘mastruz com leite’. Neste momento, eu sentia seu carinho e cuidado por mim”, relembra Ângela. A líder de montagem conta que a avó também fazia questão que os moradores da casa se reuníssem à mesa para todas as refeições, sem exceção.

Já Ana Paula lembra que dona Ivonne era uma mulher detentora de muitos saberes, inclusive de medicina natural, conhecimento passado na oralidade por gerações, segundo ela.

“As ervas não podiam faltar para os xaropes e chás. Quando faltava, a gente tinha que ir lá na horta pedir. Ela era rezadeira, mas independentemente de xaropes, chás e rezas, ela nos curava , pois tudo isso ainda tinha o toque de muito amor”, comenta.

Sabrina comenta que assim como Ana e Ângela, a saúde da família era garantida a partir das receitas de remédios caseiros de sua avó, que utilizava ervas do próprio quintal para elaborar xaropes e sucos. “Ficávamos novinhos em folha”, diz.

Ana Paula ainda destaca as receitas de sua avó, como bolo de fubá acompanhado de chocolate quente, bolinho de chuva, massa de pastel caseira e mingau. “Até hoje tento fazer igual mas não consigo”, diz.

Contudo, apesar dos saberes medicinais, a auxiliar administrativa lamenta a perda de sua avó por problemas de saúde, mas afirma que dona Nair ainda vive em suas memórias e coração.

“Eu presenciei seus últimos minutos de vida. É uma cena que não tiro da minha cabeça, mas as últimas palavras dela pra mim antes de morrer foram: ‘você vai ser a neta que mais vai se dar bem na vida e continuará sendo meu grande orgulho!’ Com essas palavras, conforto meu coração todas as vezes que sinto sua falta e, em cada degrau que consigo avançar em minha vida, ela é lembrada”, finaliza.

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