A Central Integrada de Alternativas Penais Diversas à Prisão (CIAP) na Bahia, responsável pelo atendimento psicossocial e informativo sobre o cumprimento das medidas cautelares, está com as atividades suspensas há dez meses mesmo com o repasse de mais de R$ 1 milhão à Secretaria de Administração Penitenciária da Bahia (SEAP-BA).
Na prática, a CIAP é um projeto que tem como principal atividade o acolhimento de pessoas que cumprem medidas cautelares – aquelas que substituem a pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos, como, por exemplo, prestação de serviços comunitários, restrição de saída aos finais de semana e uso da tornozeleira eletrônica.
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No estado, o projeto era executado pelo Coletivo de Entidades Negras (CEN) desde 2018 como representante da sociedade civil. Porém, as atividades foram suspensas em agosto do ano passado por falta de verbas e pelo vencimento do prazo de convênio com o Governo Federal.
Contudo, um ofício enviado pelo CEN à SEAP, em setembro do ano passado, aponta que o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) repassou à secretaria uma verba total de R$ 1.241.334,17 para prorrogar o contrato com o Coletivo por mais um ano, com vigência até julho de 2022.
Porém, desde então, as atividades não foram retomadas e a SEAP não deu um retorno sobre o motivo da não renovação das atividades, conforme conta o advogado e ex-coordenador da CIAP, Marcos Alan.
“Quando eu deixei a coordenação, em agosto de 2021, nós já havíamos conseguido autorização do DEPEN – inclusive com um empenho de valores – e o DEPEN não só autorizou, mas encaminhou dinheiro para a SEAP […] Saímos sem resposta – até hoje – sobre o porquê que a atividade não foi continuada conosco”, diz Marcos.
Com uma equipe multidisciplinar composta por 18 profissionais, entre assistentes sociais, psicólogos, redutores de danos e advogados, o ex-coordenador também conta que outros ofícios foram enviados à SEAP sobre pagamentos em aberto de colaboradores e profissionais.
Atualmente, o serviço tem sido atendido pela Central de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas (CEAPA), principal organismo de amparo jurídico e monitoramento das medidas cautelares, que, comparado com a CIAP, possui um quadro reduzido de profissionais, não dando conta da demanda.
“Eu fico muito triste com o encaminhamento que a CIAP tomou […] Eu não vejo como fazer isso através de um engessamento burocrático apesar de fazer várias ressalvas à CEAPA, que contém psicólogos, assistentes sociais, pessoas do jurídico que sei que são pessoas comprometidas, mas que fazem parte de um sistema administrativo e não como um serviço social como prestado por uma OSC (Organização da Sociedade Civil)”, aponta o ex-coordenador.
A Alma Preta Jornalismo questionou a SEAP sobre a não retomada das atividades mesmo com a destinação de verba e sobre a composição dos funcionários que hoje fazem o serviço da CIAP. No entanto, não tivemos retorno até o fechamento da matéria.
“Do descrédito ao desmonte”
Uma pesquisa realizada pela Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas alerta para um processo de desmonte dos serviços para as pessoas que cumprem alternativas penais e na aplicabilidade das medidas na Bahia.
Intitulado “Do descrédito ao desmonte: aplicação de alternativas penais e enfrentamento ao uso abusivo de prisões provisórias em Salvador“, a pesquisa traz uma análise de como a política de alternativas penais tem sido aplicada no Estado e o seu impacto como ferramenta de enfrentamento a prisões arbitrárias no contexto da Lei de Drogas.
Segundo o estudo, até agosto do ano passado, a Bahia contava com uma população carcerária de pouco mais de 14 mil pessoas, sendo que 9.004 estavam presas por crimes relacionados à Lei de Drogas. Dados da Iniciativa Negra apontam que homens e mulheres brancas correspondem a 5,6% da população encarcerada na Bahia, enquanto homens e mulheres negras — pretos e pardos, segundo critérios do IBGE — representam 93% do total de presos. O número de negros e negras presos é 16,5 vezes maior do que o de brancos e brancas.
O estado foi um dos primeiros no Brasil a aderir a política nacional de medidas de alternativas penais como uma solução para a redução das prisões provisórias e ao encarceramento em massa. O principal organismo responsável pelo acompanhamento e execução das medidas é a CEAPA, criada em 2002 em parceria com o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), órgão vinculado ao Ministério da Justiça.
No entanto, com a promulgação da Lei de Drogas (nº 11.343/2006), a narrativa de uma Guerra às Drogas, baseado em um modelo de atuação proibicionista, ampliou o desenvolvimento de mecanismos de vigilância e controle, sobretudo sobre os territórios periféricos e ocupados por pessoas negras.
“Sem os órgãos que acompanham as pessoas no cumprimento das medidas, os juízes não se sentem confiantes de aplicá-las, logo eles recorrem mais às prisões, não existindo esses serviços de acompanhamento e acolhimento”, destaca Ana Míria Carinhanha, coordenadora de programas e de pesquisa da Iniciativa Negra, sofre a fiscalização exercida pela CIAP.
Dados
Na prática, as cautelares visam resguardar o direito à liberdade, à presunção da inocência e da prisão como medida excepcional em substituição ao encarceramento. Porém, a pesquisa identificou que a má aplicação das medidas acabam sendo utilizadas como extensão do controle e da restrição, o que gera uma fragilidade no cumprimento das alternativas penais e coloca a pessoa acusada à espreita da prisão provisória.
Conforme o estudo, um exemplo é que se uma mulher precisa levar o/a filho/a ao posto de saúde, que fica fora do perímetro estabelecido pela medida cautelar, o que ela fará? Outro exemplo é se uma pessoa que trabalha vendendo picolé na praia fica restrita a sair aos finais de semana, período em que as praias têm maior movimento, de que forma ela conseguirá se sustentar?
No contexto do judiciário baiano, apesar de 39% dos processos em primeira instância aplicarem alternativas penais a pessoas que respondem por crimes da Lei de Drogas, 36,6% não apresentam informações sobre a ocupação de trabalho dos presos.
Já em segunda instância, etapa de revisão do processo, 85,4% dos processos não contam com informações sobre a ocupação dos presos, visto que quase 25% dos processos contam com aplicação das medidas restritivas.
“A partir do momento em que decide-se utilizar as medidas alternativas é importante que essas medidas sejam adequadas à realidade dessas pessoas. A gente observou uma prática de aplicação de combos de medidas que são feitas indiscriminadamente e que em algumas vezes desconsideram a própria possibilidade dessas pessoas cumprirem as medidas de maneira mais efetiva”, destaca a coordenadora Ana Míria Carinhanha.
O levantamento também analisou 105 autos de prisão em flagrante (AFPs) por crimes relacionados à Lei de Drogas em Salvador, de janeiro a dezembro de 2020. Desse total, 35 procedimentos são referentes a pessoas acusadas brancas e 70 são de pessoas acusadas negras (pretos e pardos, conforme os critérios estabelecidos pelo IBGE).
Dos AFPs analisados, em 29,52% dos casos (31) houve a decretação de prisões preventivas e em 61,9% (65) houve a conversão da liberdade provisória com aplicação de algum tipo de medida cautelar.
Dentre as medidas cautelares aplicadas, a proibição de ausentar-se da Comarca foi estabelecida na maioria dos casos, totalizando 57% do total. Já a monitoração eletrônica foi aplicada enquanto medida cautelar em 8,6% dos casos.
À frente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Salvador, a vereadora Marta Rodrigues (PT) pontua que a desproporcionalidade da aplicação das medidas cautelares gera um impacto coletivo que alimenta o ciclo da desigualdade social e pobreza na cidade.
“Quando medidas restritivas não observam a realidade de cada indivíduo, pode estar impedindo-as de exercerem suas atividades regulares, laborais e de geração de renda para sobrevivência. Muitas dessas pessoas em situação de restrição de liberdade sustentam famílias, ajudam ou ajudam no sustento delas”, pontua a vereadora.
Para Ana Míria Carinhanha, para além da aplicação de medidas, é preciso que o judiciário reconstrua uma relação de confiança com a sociedade na adoção de políticas que levem em consideração a integração social.
“Do descrédito ao desmonte, a quem essa seletividade está tocando? No bom e no mau sentido. Acho que é um compromisso nosso se fazer essas perguntas”, diz a coordenadora.
Já a vereadora Marta Rodrigues ressalta que é preciso repensar a dinâmica do poder judiciário e os mecanismos de controle por trás da seletividade penal.
“Precisamos pensar em outras formas de sociabilidade não baseadas no controle de vida, mas na promoção do Bem Viver, da Justiça Racial e da Justiça Reprodutiva. Não podemos permitir a manutenção destes graves impactos e consequências que passam as pessoas em situação de privação de liberdade, principalmente as pessoas e mulheres negras”, completa.
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