O coletivo Quilombo PcD surgiu com o objetivo de tirar as pessoas negras com deficiência de um lugar de não pertencimento a partir de um trabalho interseccional de combate ao racismo e ao capacitismo. Nele, pessoas de todo o país se conectam e se acolhem, fortalecendo essas lutas.
Criado pelo filósofo, escritor e ativista Marcelo Zig e a criadora de conteúdo e ativista Flávia Diniz, o coletivo nasceu na segunda metade de 2020 e realiza reuniões online quinzenalmente, além do diálogo constante com os membros via WhatsApp. Com a internet como principal plataforma para estabelecer as conexões e o diálogo, o Quilombo preenche uma lacuna observada e sentida por muitas pessoas negras com deficiência, assim como o próprio Marcelo.
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“Consegui colocar uma foto de corpo inteiro no meu perfil e me senti bem”, conta Marcelo. Foto: Acervo Pessoal
“Quando eu me tornei PCD, eu achei que o racismo ia me abandonar, me dar uma trégua e que eu teria de enfrentar somente o capacitismo, mas foi ingenuidade minha. Eu me direcionava aos movimentos das pessoas com deficiência, podia falar sobre isso, mas eu voltava pra casa com um espaço não preenchido, a minha negritude não era pautada. O mesmo acontecia no movimento negro”, conta Marcelo. “Há pessoas que não se reconhecem enquanto negras e PcDs, até porque preto é reconhecido como gente há pouco tempo”, acrescenta Flávia.
Segundo o Censo 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, até aquele ano existiam 45 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência no país. “Assim como a população preta é maioria no país, o povo preto também é maioria entre as pessoas com deficiência”, aponta Marcelo. Ele relata que mesmo sendo muitos, a falta de contato com outras pessoas negras e dificientes sempre foi uma grande questão. “A gente não sabia onde estávamos, como nos relacionamos, em que espaço vivíamos”, fala.
Legislação x Inclusão
A Lei Brasileira de Inclusão estabelece que pessoas com deficiência devem ter assegurados os direitos de liberdade e igualdade na sociedade, assim como o respeito e a inclusão social. O objetivo é amparar a população PcD para que ela esteja presente em espaços de trabalho e convívio social e para que tenha segurança, autonomia e acessibilidade. “A lei no Brasil é completa, mas não existe prática e nem fiscalização”, lamenta Flávia.
Marcelo complementa falando que a legislação quando colocada em prática com filas preferenciais, por exemplo, se torna excludente. “A criação de um caixa específico cria uma fila de deficiência, que fere a lei já na essência, isso aí é o quarto dos fundos de antigamente. Você pode ter uma participação social, desde que ocupe o lugar que é determinado pra você. Atendimento exclusivo é segregação”, considera.
O ativista relembra que, historicamente, as pessoas com deficiência eram sacrificadas, abandonadas ou trancafiadas. Com o passar do tempo, passaram a ficar reclusas nos fundos das casas para não gerar constrangimento para a família, até o período em que a deficiência, seja ela de qualquer natureza, foi institucionalizada e os cidadãos PcD eram colocados em manicômios e escolas especiais.
“Era uma prática de sociedades antigas sacrificar crianças consideradas fisicamente inaptas à atividade militar, por exemplo, acontecia muito com os espartanos. No Brasil, os dados sobre abandono de crianças com deficiência ainda são muito altos”, explica a historiadora Júlia Bittencourt.
O também historiador Victor Lopes, membro da Clio: História e Literatura, ressalta que “nascer com deficiência era considerado mau presságio em algumas culturas, fator que levava à morte e sacrifício dessas pessoas”. “No capitalismo, além das questões da expressão cultural e religiosa, está muito ligado ao mundo do trabalho”, complementa.
O racismo caminha ao lado do capacitismo e ambos fazem parte da construção histórica do país. “O que acontece com um preto que sobrevive à estatística de uma morte a cada 23 minutos? A gente até hoje não se pergunta sobre o que acontecia com os negros dificientes escravizados ou que adquiriram deficiência. Ainda se tem uma compreensão de uma interpretação capacitista de que isso é o ponto final da vida de uma pessoa, como se ela morresse em vida e não é assim”, pondera Marcelo.
Racismo e capacitismo
Mãe solo, mulher preta e periférica, Flávia tornou-se uma pessoa com deficiência há cinco anos, quando descobriu um câncer que atingiu O sistema nervoso central e afetou os movimentos das pernas e dos braços. “Eu perdi a conta de quantas vezes eu tive que tomar banho no chão e essa é a realidade da grande maioria da população preta, pobre e PcD no Brasil”, desabafa a criadora de conteúdo. “Eu chamo meu andador de Ayó – aquele que traz felicidade, em Iorubá”, revela.
Foto: Acervo pessoal
Sobre o trabalho desenvolvido no coletivo, a ativista reitera que existem muitos questionamentos a serem feitos, a começar pelo papel que a população negra e PcD desempenha. “O quilombo já existiu lá atrás, mas lá atrás nós éramos mortos. Hoje, para que nós existimos?”, questiona.
De acordo com a ativista, o carinho e o respeito pelas pessoas que fazem parte do coletivo está em primeiro lugar: “Eu falo: ninguém vai mexer com os meus. São como filhos para mim”,destaca.
É dessa forma, acolhida, que as pessoas que integram o coletivo se sentem. “É maravilhoso saber que eu não estoy sozinho nessa luta enquanto corpo negro, LGBTQIA+, pessoa com deficiência e periféric. Eu me sinto acolhido e posso ter diálogos sobre isso”, conta Diogo Magno, de 19 anos.
Foto: Acervo Pessoal
Membro do coletivo, Diogo trabalha como assessor e primeiro-secretário, auxiliando no contato feito pelas redes sociais com os membros do Quilombo PcD. Ele se emociona ao contar a história de Daiana, mãe-solo de uma criança autista. “O trabalho deles na minha vida é fundamental na minha vida, eles têm me ajudado muito a entender melhor a minha situação. Eles estão lutando comigo pelo meu filho”, diz Daiana.
O próximo passo do coletivo, que não tem nenhum apoio financeiro, é organizar arrecadações para a regulamentação em cartório como um instituto. “A gente tenta fazer o mapeamento que a saúde pública não faz”, explica Flávia. “As pessoas estão chegando aos montes, como a gente já imaginava que seria. O movimento precisa de uma oxigenação, são histórias riquíssimas de pessoas que estão lutando para sair desse não-lugar”, conclui Marcelo.