Essa foi uma constatação do Alma Preta ao analisar dados do Morumbi e da Brasilândia, bairros das Zonas Sul e Norte da cidade de São Paulo, epicentro da Covid-19 no Brasil
Texto: Flávia Ribeiro | Edição: Pedro Borges | Imagem: Leo Correa
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
Pouco mais de vinte quilômetros separam os distritos do Morumbi e da Brasilândia, nas Zonas Sul e Norte de São Paulo, respectivamente. Em comum, está a origem, ambos surgiram do desmembramento de sítios e chácaras. A partir daí só existem diferenças, mas repetindo a fatos históricos deste país: pretos, pobres, favelados e periféricos morrem e durante a pandemia da Covid-19, o novo coronavírus, a situação não é diferente.
O Morumbi concentra alguns dos bairros mais ricos do município. A Brasilândia já chegou a bater recorde de assassinatos. Em 1997, o bairro periférico passou a ser o distrito com maior taxa de homicídios em relação à população do Brasil: 101,2 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes. Com a pandemia, a dicotomia se evidenciou. O Morumbi chegou a ser o distrito com mais números de casos confirmados, mas, na mesma época, a Brasilândia era onde mais pessoas morriam em decorrência da Covid-19.
Segundo a edição extraordinária do Mapa da Desigualdade, elaborada pela Rede Nossa São Paulo, o CEP é um fator de risco na pandemia. Para afirmar isso, a organização cruza dados, por distrito, do Mapa da Desigualdade 2019, sobre a idade média ao morrer; população negra; e porcentagem de domicílios em favelas com o número de óbitos por Covid-19, divulgados pela Prefeitura e o Ministério da Saúde. O objetivo é identificar se os piores indicadores de qualidade de vida ou de maiores vulnerabilidades sociais são também os distritos que apresentam os maiores números de falecimentos pela doença.
O resultado foi que as maiores taxas de mortalidade para 100 mil habitantes pela Covid-19 se concentram nos bairros mais pobres da região central e intermediária da cidade de São Paulo, onde há alta incidência de moradias precárias. Já nos distritos da periferia, como Brasilândia, Sapopemba, Parelheiros e Grajaú, há os maiores índices de contaminados e mortos pela pandemia, chegando a um número cinco vezes maior, se comparado aos bairros mais ricos.
Mas o que faz a Brasilândia ser um dos distritos com maior número de mortes por Covid-19? Já são 277 mortes no distrito, que liderou a lista por várias semanas seguidas e agora, está atrás apenas de Sapopemba, com 300 mortes. São mais de 6 mil casos suspeitos e menos de 40% são confirmados. O Morumbi, por outro lado, chegou a ter mais de 1.300 casos suspeitos e 60% de casos confirmados, com 22 mortes.
Segundo a Rede Nossa São Paulo, as regiões mais pobres concentram a maior parte da população negra. Mais de 50% dos moradores são negros no Jardim ngela, Capão Redondo, Parelheiros, Grajaú, Lajeado, Cidade Tiradentes, Itaim Paulista, Jardim Helena, Vila Curuçá, Guaianases, Pedreira, Jardim São Luís, Iguatemi, Brasilândia e Anhanguera. Especificamente na Brasilândia, pretos e pardos representam 50,6% da população. Já o Morumbi tem 19,53% e a média da cidade de São Paulo é de 32,1%.
Como se trata de uma crise sanitária, leitos hospitalares fazem diferença nos casos mais críticos da doença. Os valores ideais seriam de 2,5 a 3,0 para cada 1 mil habitantes. Mas na Brasilândia, o índice é de 0,011, enquanto no Morumbi é de 14,54. A taxa de espera por consulta médica, em dias, dos moradores do bairro da Zona Norte é de 62,46, o segundo pior da cidade. Já no outro bairro é de 1,71. (Dados referentes ao ano de 2018, de CNES; SMS; SES; IBGE; Seade e abrangem apenas estabelecimentos de saúde públicos e privados contratados/conveniados e prestadores de serviços ao SUS no município).
A média da cidade de proporção de árvores, no sistema viário, em relação à área total do distrito, é de 671,2, mas na Brasilândia é de 236,5, enquanto que no Morumbi é de 1.377,6. Já a arrecadação de IPTU, com base em informações da Secretaria Municipal da Fazenda, analisando os pagamentos efetuados em atraso durante o exercício de 2019, correspondentes ao IPTU de 2018, mostram que a média da cidade é de R$ 94.799.843,22, já no Morumbi é de R$ 269.171.972,58, enquanto na Brasilândia, R$ 17.357.047,19.
Os dados mostram que os moradores do distrito ligado à Subprefeitura do Butantã têm mais leitos hospitalares, esperam menos por uma consulta médica, moram em um local mais arborizado. Essa situação fica ainda mais evidente, por meio dos dados demográficos publicados pela prefeitura, no último dia 29, com base no Censo de 2010. O Morumbi tem uma área de 11,40 mil km² e uma população de 46.957, com densidade demográfica de 4.119 habitantes por quilômetro quadrado. Já a Brasilândia tem uma área de 21 mil km², quase 265 mil habitantes. A densidade é quase três vezes maior que a do outro distrito, batendo 12.615 habitantes por km².
Conhecer as diferenças nos distritos é um fator primordial para aplicar recursos e combater a pandemia. Essa é uma das razões para o Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (Labcidade), da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), ter criado um mapa interativo que permite encontrar os endereços onde estão os casos de hospitalizações provocadas pelo vírus, em 25 municípios da Região Metropolitana de São Paulo. O mapa teve como base as informações do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSus). “Entender a localização da pandemia implica compreender quais os fatores, tendências e principalmente quais são as políticas públicas que poderiam ser adotadas, analisando a realidade de cada território”, explica Gisele Brito, pesquisadora do Labcidade.
Para ela, os boletins emitidos pela Prefeitura de São Paulo são muito simplificados diante da complexidade da cidade. “Isso dificulta muito a leitura dos fatores que levam a essa distribuição territorial. Há alguns distritos que são maiores que cidades do Brasil. Dizer que um tem mais mortes ou hospitalizações não quer dizer muito, porque não conseguimos entender o que está acontecendo ali, se está atingindo a população com maior renda ou menor renda, se mora em apartamento, prédio, se é mais pobre, mais rica. Cria uma leitura homogeneizada de um território, que na maioria das vezes é muito heterogêneo”, analisa.
Além disso, as leituras que não consideram as diferenças dos distritos tendem a prejudicar e estigmatizar alguns grupos. “A identificação de determinadas populações, como negras, migrantes e grupos étnicos específicos que foram associados a doenças em seu ambiente e em sua forma de morar, foi o fator de promoção de remoções de grande escala e de grandes transformações de territórios populares para territórios de interesse especulativo, para novas fronteiras imobiliárias”, fala a pesquisadora, citando como exemplo, que em distritos onde há uma renda alta, boa parte da mão de obra que circula nesses territórios não mora lá, mas que “pode muito bem estar se contaminando em Pinheiros e voltando para casa no Capão Redondo, Sapopemba e Brasilândia com o vírus. No entanto, os números são atribuídos aos bairros mais periféricos e associados às formas de morar, em vez de considerar também as formas de trabalho e de locomoção.
Gisele ainda destaca que as iniciativas tomadas de autogestão adotadas pelas comunidades repercutem positivamente e causam grande impacto nos territórios. “São pessoas que conhecem o território e encontram soluções para contribuir nesse cenário, que é o que o Estado deveria fazer: aproximando a gestão das necessidades das pessoas”, salienta.
Autogestão comunitária
Se o poder público se ausenta, é da própria comunidade que surgem as demandas e o amparo. Uma rede solidária se formou na Brasilândia, resultado na arrecadação e distribuição de mais de cinco mil cestas de alimentos. “A gente vai se comunicando entre a gente e se organizando. Não é um grupo específico, as pessoas doam e fazem o que podem. Agora, a gente já está mais estruturado e sabe onde conseguir preços melhores para montar as cestas. Estamos conseguindo umas parcerias que nem achávamos que conseguiríamos. Fizemos vakinha online. No mês que vem, vamos participar de uma live para conseguir mais cestas. Estamos tentando suprir essa necessidade porque muita gente está perdendo o emprego e muitos já passavam dificuldades”, afirma Robson Franco, 31 anos, trabalhador de transporte de cargas.
Franco fala que apesar da solidariedade, um dos fatores que vem influenciando no local é a falha no isolamento social. “O pessoal está desacreditado e já faz festinha. As pessoas mais velhas são as que têm mais consciência. Semana passada morreu um amigo nosso. Na rua de casa, morreram dois e conheço várias pessoas infectadas, em quarentena. A cada semana está piorando, mas parece que já normalizou e as pessoas perderam o medo da doença” lamenta.
Moradora da Brasilândia desde que nasceu, Priscila Reis é relações públicas de formação e há cerca de 10 anos desenvolve um trabalho social na equipe do Preto Império, empresa social situada na Brasilândia. Ela conta como foi a chegada da pandemia no local. “Começamos a receber doses diárias e intensas de notícias ruins pelos meios de comunicação tradicional e por onde íamos, ninguém sabia e ainda não sabemos ao certo quais rumos tomar. Muitos ficaram desempregados, e percebi que algumas pessoas não estavam levando a sério que um vírus como esse chegou em nosso país e se aproximava cada vez mais, até estarmos no ranking como um dos bairros com mais casos de mortos da Cidade de SP”, conta.
A organização teve que ajustar a atuação no bairro frente ao desafio imposto pela pandemia. “Estamos realizando desde o início, em parceria com as UBSs locais, ONGs e coletivos um trabalho de conscientização, com carro de som, entregando informativos sobre a Covid-19. Recebemos também doações de cestas básicas de alimentos não perecíveis e orgânicos, kit para crianças executarem atividades criativas em casa com suas famílias, máscaras, dentre outros itens essenciais”, afirma Priscila.
Na ausência do poder público, são organizações como a Preto Império que estão auxiliando os moradores. “Nós, dos coletivos fazemos o que está ao nosso alcance, fizemos financiamento coletivo, tentamos diversas formas de arrecadações, e distribuímos mais de 2.000 cestas básicas desde o início da pandemia. Porém não damos conta de atender a demanda de pessoas doentes e desempregadas, a sensação que tenho é que somos nós por nós. Se não houvesse pessoas que ajudassem ao próximo por empatia e amor, a coisa seria ainda pior”, considera a relações públicas e ativista social.
O que diz o poder público?
Em nota, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal da Saúde, informa que os Agentes Comunitários de Saúde realizaram, até o dia 19 de junho, 1,3 milhões de abordagens, com visitas e orientações em cerca de 8.800 ações comunitárias. Em toda a cidade de São Paulo, as ações dos agentes e equipe multiprofissional foram direcionadas para enfrentamento à Covid-19. Além disso, vale ressaltar que as ações da SMS nas comunidades consideram as particularidades de cada território. O isolamento social é orientado de acordo com a realidade do local. As equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF) realizam visitas domiciliares diariamente, orientando a população da região em praças e locais públicos sobre a doença, práticas e higiene, uso de máscaras e sintomas da doença.
A SMS esclarece que, desde o início da pandemia, até o dia 22 de junho, foram entregues 1.750 leitos de enfermaria Covid-19 e 1.223 leitos de UTI Covid-19.
A SMS informa também que seus equipamentos estão promovendo diversas iniciativas para garantir o atendimento e informação nas comunidades, tais como: direcionamento das ações dos Agentes Comunitários de Saúde e equipes multidisciplinares para enfrentamento de combate a Covid-19, vacinação contra Influenza, utilização de diversas ferramentas de comunicação para divulgação (Ex. carro de som, cartazes), reforço aos cuidados de higiene individual e da residência, monitoramento de todos os casos com sintomas leves de gripe, através de contato telefônico e nos casos necessários através de visita domiciliar. Também estão sendo feitas doações de máscaras de tecido e de TNT, além das confeccionadas em oficinas dos Centros de Convivência e Cooperativa (CECCO) e Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).
Esta reportagem faz parte do projeto #NoCentroDaPauta, uma realização das iniciativas de comunicação Alma Preta, Desenrola e Não me Enrola, Embarque no Direito, Nós, Mulheres da Periferia, Periferia em Movimento, Preto Império e TV Grajaú, com patrocínio da Fundação Tide Setúbal.