Gustavo Paulo, estudante de design gráfico da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e natural de Araçatuba em São Paulo, é um dos muitos alunos que se viu com a necessidade de mudar de cidade para ingressar no ensino superior. Durante os anos de graduação, em um novo município e longe da família, ele se deparou com barreiras que vão além da aprovação no vestibular.
“O primeiro problema que salta é a questão de não ter uma estrutura adequada de moradia e de restaurante universitário. Quando eu entrei em 2016, tivemos uma greve exatamente pedindo o aumento das refeições no restaurante e também o aumento de vagas na moradia, que não atendiam o número de alunos do campus”, relata.
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Os estudantes negros e negras quando chegam à universidade, ainda hoje, se deparam com obstáculos e a falta de acolhimento suficiente pelas instituições de ensino. Segundo Gustavo Paulo, a dificuldade no acesso às poucas bolsas existentes e os baixos auxílios para permanência acabam atrapalhando o universitário negro de se manter dentro da instituição, sobretudo aqueles que entram por políticas de inserção e se encaixam em um perfil de pessoas com uma renda mais baixa e condições de maior vulnerabilidade.
“É um problema. Esse universitário negro, além de ter que fazer a universidade, tem que trabalhar para se manter na cidade nova ou para se manter mesmo morando na casa dos pais”, explica.
A história de Ingrid Rodrigues, licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e mestranda em Antropologia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é semelhante a de Gustavo Paulo em relação aos desafios que enfrentou para se manter ao longo dos anos de estudo.
“A falta de dinheiro e a preocupação com a casa afetam diretamente no desenvolvimento. Hoje, já no mestrado, a gente está na luta para conseguir o aumento da bolsa, por conta do aumento da crise financeira no Brasil. A gente que é da pós-graduação e está desenvolvendo pesquisa científica não é visto como classe trabalhadora. Não queremos um dinheiro que dê apenas para a gente existir, mas para viver também”, destaca.
Diante da pandemia e dos desafios impostos aos universitários negros, as dificuldades na continuidade dos estudos também aumentam. Mel Oyá ingressou no curso de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP) durante o início da pandemia no Brasil, em 2020, e conta que enfrenta obstáculos ao conciliar as demandas da universidade e do trabalho.
“Eu tive que trancar algumas disciplinas porque estava insustentável na minha vida de mulher que trabalhava, que precisava gerenciar e ajudar em uma casa e que tinha mais a universidade, onde há um monte de disciplina e que tem uma estrutura fechada, em que você precisa entregar um monte de atividades, não importa se está entendendo ou não o que está sendo passado”, relata Mel.
Dificuldades históricas em um contexto racista estrutural
Segundo Cleber Santos Vieira, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as, quando se fala de permanência estudantil de estudantes negras e negros na universidade, há um histórico a se destacar de interdição da presença dessas pessoas dentro das instituições de ensino superior.
“O acesso ao sistema educacional no Brasil por muito tempo foi um processo interditado à população escravizada e negra. Interditado pelas próprias leis do Império. Considerando esse processo, a presença de pessoas negras no interior de universidades, notadamente das instituições públicas federais, estaduais e municipais, em quantidade importante é algo recente na nossa história, muito derivada das reivindicações do movimento negro por políticas públicas de reparação e também combinada ao processo de expansão do sistema público de ensino”, explica.
Segundo o professor, além desse histórico, as políticas de permanência precisam levar em consideração quem são os estudantes que chegam às universidades, já que há uma maioria de negros e negras em situação de vulnerabilidade. Também é importante que se tenha uma atenção ao psicológico desses alunos.
“Há uma questão muito séria envolvendo as relações raciais e os efeitos psicossociais do racismo. Muitas vezes, nós chegamos à universidade com nossos corpos e com nossa vontade de estudar, mas falta um fortalecimento interior juntamente com o fortalecimento político e acadêmico, porque o racismo faz de migalhas a nossa identidade, o nosso pertencimento e a nossa estrutura mental”, ressalta o professor.
O estudante Gustavo Paulo relata que a cultura que há dentro da universidade exerce uma pressão muito grande nos alunos negros e a todo o momento ela busca expulsar essas pessoas do ensino superior.
“Dá para perceber que a universidade é montada para não ter um corpo negro, um corpo indígena, um corpo diferente daquele que é o esperado de estar ali dentro. Isso é percebido em vários detalhes, como na falta de professores negros, na falta de matérias de autores negros e autoras negras que favoreceram tanta discussão acadêmica dentro do Brasil. A gente é formado a pensar com pensamento branco e eurocêntrico”, ressalta.
Além disso, Mel Oyá fala que a sensação de autossabotagem e autoboicote dos estudantes negros dentro desses espaços é muito grande. As relações de afeto entre essas pessoas dentro das instituições, em amizades e coletivos, por exemplo, acabam sendo o fortalecimento fundamental encontrado para a continuidade, na medida em que a instituição não tem uma política institucional que ajuda no acolhimento desses estudantes.
“Diante de tudo isso, estar dentro da universidade é você conseguir ter uma autoestima. A gente aprende vendo o outro. As nossas relações de aquilombamento nos fortalecem para estar nesse espaço e pautar o futuro e presente lá”, destaca.
As políticas de permanência hoje são insuficientes
O Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) é uma política que começou a ser implementada a partir de 2008 e que busca garantir o ingresso ao ambiente acadêmico e apoiar a permanência de estudantes de baixa renda dentro de instituições públicas de ensino superior federal. As ações propostas pelo PNAES são executadas pela própria instituição de ensino, que deve acompanhar também o desenvolvimento do programa.
De acordo com informações da Nota Técnica n° 9, disponibilizada pela Defensoria-Pública Geral da União em outubro de 2021, desde sua criação, o PNAES conseguiu uma expansão, mas, a partir de 2015, houve uma estagnação nos valores repassados. Em 2021, houve uma redução de 42% entre o valor que seria destinado e o que realmente foi empenhado nas ações do programa.
Também em 2021, o orçamento disponibilizado para o Centro Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), órgão principal de fomento à pesquisa no Brasil e que disponibiliza bolsas para os estudantes de instituições de ensino superior, foi o menor do século.
“Nós vivemos diante de uma situação em que a ausência de assistência estudantil trata-se de um projeto de destruição e de provocar uma exclusão da população negra das universidades. Internamente, as instituições têm programas diversos de assistência estudantil, mas quando não se considera o fator racial, sempre se tornarão um problema”, explica.
De acordo com Juarez Xavier, professor do curso de jornalismo da Unesp e vice-diretor da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design da instituição, é necessário repensar os auxílios e assegurar a presença dos pretos e pardos na universidade fazendo também uma leitura de perfil, sabendo quais são as necessidades específicas desses estudantes negros e negras e alocando recursos nessa direção.
“Uma questão importante é ter uma política pública complementar. É necessário ter a política das instituições, mas os territórios nas quais as universidades estão fincadas e nas quais as universidades desenvolvem suas atividades precisam também se envolver nessa política pública para atender esse aluno do ponto de vista do transporte, de moradia, de alimentação”, destaca.
Além disso, Xavier também destaca ser fundamental que os estudantes tenham condições de se incluir no espaço de ensino superior dentro de um planejamento seguro. “É você ter uma política de previsibilidade de curto prazo, que possa atender as necessidades emergenciais agora da pandemia, de médio prazo, que permita o aluno ter a previsibilidade da sua formação na graduação, mas também de longo prazo para que ele possa criar condições de planejamento futuro da sua atividade de pesquisa científica e acadêmica”, finaliza.
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Este conteúdo é resultado de uma série de reportagens sobre Racismo Estrutural com o apoio do Governo do Estado da Bahia.