O primeiro quilombola a morrer no Ceará estava no grupo de risco para complicações do novo coronavírus
Texto: Flávia Ribeiro | Edição: Nataly Simões | Ilustração: Alma Preta
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Aos 85 anos, Francisco Fortunato Costa, conhecido como Seu Pité, foi o único quilombola do Ceará a morrer vítima da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus. O Brasil já acumula a estatística de quase 60 quilombolas mortos, boa parte tinha mais de 60 anos de idade. Uma pandemia em que os idosos estão no grupo de risco para complicações atinge uma característica muito especial de pessoas negras e quilombolas: a ancestralidade, pois são os idosos que carregam o legado de resgate da história do seu povo.
Figura conhecida no Quilombo dos Caetanos de Capuan, município Caucaia, no Ceará, Seu Pité criou seis filhos, nove netos e três bisnetos, além de incontáveis amigos. “Um grande homem trabalhador, que sempre esteve na sua ancestralidade, na resistência, no habitat familiar, na luta e na permanência da sua dignidade, do seu trabalho na agricultura e como motorista de uma grande pedreira no município. Na vida foi sempre acessível, comunicativo com todos os parentes e famílias no quilombo”. É dessa forma que ele é descrito pela sobrinha, Cristina Quilombola, presidente da Associação dos Remanescentes do Quilombo dos Caetanos em Capuan Caucaia CE (ARQCCC).
O quilombo conta com 85 famílias e a movimentação no local é grande por estar localizado à beira de uma estrada federal, com vários acessos, o que pode ter sido fundamental para que o coronavírus chegasse na comunidade. “Teve muita proliferação porque há muitas pessoas que não são da comunidade, mas que estão no nosso território”, relata Cristina.
A comunidade está mais resguardada, com os moradores utilizando máscaras, álcool em gel e tendo mais atenção na limpeza dos alimentos. Dentre as estratégias adotadas para combater a pandemia, estão o uso de carro som falando da importância e grupos do WhatsApp para falar das medidas de prevenção.
O quilombo está mais triste, sente falta do seu Pité e da vida, como era antes da doença. As pessoas, no entanto, permanecem em isolamento social para cuidar umas das outras e se prevenirem. “Estamos acompanhando nossos idosos e idosas, que são nossos griôs, são sabedores da nossa história dentro da nossa comunidade e nossas ancestralidade. A permanência deles nos faz fortalecer nessas lutas e nas conquistas. Infelizmente, essa crise na saúde aumentou a vulnerabilidade social”, destaca Cristina. Ela acrescenta que “essa é mais uma crise dentro do Brasil, porque já existe o genocídio dentro das populações negras e quilombolas”.
Falta de estrutura e difícil acesso ao sistema de saúde
O Quilombo dos Caetanos de Capuan sofre com um problema comum na maioria das comunidades tradicionais do Brasil: a falta de estrutura. Cristina relata que só há um posto de saúde para atender todos os moradores da localidade. Em caso de agravamento de doenças, é necessário se deslocar para a capital do estado, Fortaleza, onde há leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Além disso, Cristina ainda destaca que a pandemia e suas consequências têm mexido com a saúde mental das pessoas. Há pessoas com depressão e que com o isolamento podem piorar. “Estamos monitorando e tentando minimizar, fazendo vídeo chamadas para saber como estão. Ainda tem ações de assistência social mantidas com outras organizações. A gente pensa na pandemia, mas também na pós-pandemia. Porque sabemos que a vulnerabilidade social aumentou bastante, não só no Brasil, mas em todo o mundo”, explica.
“Estamos pedindo forças aos nossos ancestrais e aos nossos orixás para que tudo isso passe e que a gente reconstrua as nossas vidas, mas de um olhar mais diferenciado ao nosso povo e comunidades tradicionais e que as políticas públicas sejam realmente implementadas de verdade em nossos territórios porque seguiremos e avançaremos nessa luta”, pondera.
A família do Seu Pité preferiu não divulgar nenhuma imagem dele, pois não querem que sua memória seja vinculada à pandemia. De acordo com os familiares, ele sempre teve uma presença reconhecida na comunidade e desde o dia 16 de maio passou a ser força ancestral. “Ele sempre será lembrado como um homem aguerrido, lutador, negro e que nos fez entender a força e a resistência de cada um dentro da comunidade. Mesmo com a pandemia a vida prevalece e a vida dos quilombolas importam”, considera a sobrinha.