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Testemunha diz sofrer ameaças para mentir em caso de preso espancado

Em 2021, um detento foi espancado por um agente da penitenciária de Presidente Prudente por causa de um ovo frito

Imagem: Dora Lia Gomes/Alma Preta Jornalismo

Foto: Imagem: Dora Lia Gomes/Alma Preta Jornalismo

7 de março de 2023

Desde que as investigações sobre o caso de agressão contra um detento por causa de um ovo frito na penitenciária Wellington Rodrigo Segura, em Presidente Prudente/SP, foram arquivadas pelo governo paulista, a família permanece correndo atrás de provar o acontecido e de conseguir Justiça sobre a situação. O novo relato de uma testemunha abre caminhos para mais um inquérito investigativo da ocorrência ao revelar que ela foi coagida a prestar um depoimento falso em que negava as acusações.

A agressão que ocorreu na penitenciária de Presidente Prudente foi revelada com exclusividade pela Alma Preta Jornalismo e aconteceu em 2021, quando o detento Augusto Carmelita foi algemado e espancado por um agente da unidade por causa de um ovo frito. A agressão aconteceu em junho daquele ano, mas a família só soube do episódio no mês de agosto de 2021, pois o preso ficou um período impedido de receber ou mandar mensagens.

No ano passado, também foi publicada uma matéria falando sobre o arquivamento do caso pela Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), que enviou uma nota explicando que “tanto no âmbito administrativo quanto judicial optou-se pelo arquivamento pela ausência de provas que comprovassem as acusações feitas pelo sentenciado”.

O líder comunitário Rodrigo Olegário, coordenador do projeto Brasilândia Cabeção, na zona Norte da capital paulista, e irmão do Augusto, conta que, ao investigar mais a fundo por conta própria o que levou o caso de Augusto a ser arquivado, descobriu que uma testemunha havia desmentido as acusações. Entretanto, em contato com a testemunha, descobriu que houve um processo de ameaça para que ela mentisse sobre o que havia acontecido em junho de 2021.

“Ele falou que foi coagido a mentir, porque faltavam poucos dias para ele sair e o pessoal o ameaçou”, explica Rodrigo. Após uma conversa com a família de Augusto, a testemunha, então, aceitou fazer um novo relato contando o que realmente aconteceu.

Em 22 de novembro de 2022, o irmão de Augusto entregou a carta com o novo depoimento da testemunha para o Grupo Especial de Combate aos Crimes Raciais e de Intolerância (Gecradi), grupo de atuação especial do Ministério Público do Estado de São Paulo, que ficou de apurar os fatos para uma reabertura da investigação.

A Alma Preta Jornalismo teve acesso à carta com o novo relato feito pela testemunha. Ela conta que, no dia da agressão na penitenciária, ao se dirigir ao setor de inclusão, onde Augusto estava sendo espancado por um agente penitenciário, ela pôde ouvir os gritos de dor e os barulhos de golpes, além da voz de outros agentes que buscavam cessar a sequência de ataques. “Durante a agressão, pude ouvir muitas ofensas de cunho racial”, também relata. Além disso, ele conta que era possível constatar que Augusto ficou ferido com escoriações e hematomas após a agressão.

Assustado com o acontecido, ela relata que após o ocorrido acabou assinando um depoimento redigido pelo próprio diretor geral da unidade que disse para ela assinar, “deixando de forma subliminar a entender que essa seria a única opção”, conforme conta. Segundo informações coletadas por Rodrigo Olegário, irmão de Augusto, esse seria o documento que negava o ocorrido e que foi crucial para o arquivamento das investigações.

Na carta com o novo depoimento entregue ao Gecradi, a testemunha também relata que não é incomum haver episódios de falas racistas e de discriminação racial por parte de agentes penitenciários no cotidiano do presídio de Presidente Prudente, o que gera medo e tensão entre os detentos. Inclusive, ela aponta que houve agentes penitenciários que apoiaram o colega envolvido na agressão e ela mesma chegou a se sentir oprimida, sendo enviada para o convívio onde presos que trabalham são mal vistos e podem correr perigos.

A Alma Preta Jornalismo tentou contato com a testemunha para colher mais informações e detalhes sobre o acontecido, mas não foi possível obter um retorno até o momento.

Leia mais: SP: caso de preso espancado por causa de um ovo em presídio é arquivado

Relembre o caso

Conforme noticiado, por volta das 7h da manhã, o agente penitenciário James chegou para tomar café da manhã junto com colegas. Augusto Carmelita, que cumpria pena no regime semiaberto e era um preso considerado de bom comportamento, era o único trabalhando na copa do presídio e servia ovos fritos para os funcionários do local. O preso serviu os ovos, porém, a quantidade disponível não era suficiente para todos e o agente ficou sem, indo embora do local logo em seguida.

Porém, uma outra funcionária da penitenciária, ao saber que os ovos haviam acabado, conseguiu mais alguns em outro local e combinou com Augusto para que a turma da cozinha pudesse fritá-los.

Quando James retornou à copa e viu que outros funcionários estavam comendo ovos, acusou Augusto de mentiroso e de esconder o alimento. Mandou, então, que ele virasse o rosto para a parede e que colocasse as mãos para trás. Então o algemou, levou o preso para um outro local longe das câmeras e deu vários golpes de cassetete nas costas dele, diante de todos.

Na época dos fatos, a família de Augusto denunciou o caso para o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), que chegou a fazer uma visita à penitenciária e uma oitiva com Augusto e com a direção da unidade em 22 de setembro de 2021. No relatório produzido pelo Condepe, após a visita, Augusto relata que o agente penitenciário antes de algemá-lo, disse que ia “mostrar o que fazer com quem mente para agente”.

Penitenciária de Presidente Prudente

Segundo testemunha, não é incomum haver episódios de racismo por parte de agentes penitenciários | Foto: Sindasp

Ele também conta no relatório que, durante as agressões, outros agentes penitenciários buscaram conter o colega, mas eram empurrados e ignorados, inclusive relata haver uma agente que chegou a ser agredida. Depois do dia da agressão, outros dois agentes penitenciários chegaram a intimidá-lo e fizeram ameaças buscando fazer com que Augusto não denunciasse o ocorrido.

Além disso, Augusto relatou que, por diversas vezes, era chamado pelo agente envolvido na agressão de “negrão safado” e “folgado”, tendo sido amarrado em uma grade como um escravizado.

Ainda de acordo com o relatório do Condepe, o diretor-geral e o diretor de disciplina da unidade não negaram os fatos. Eles informaram que havia sido lavrado um boletim de ocorrência com fotos tiradas do preso, que foram colhidos depoimentos dos agentes que estavam presentes no momento dos fatos e que havia sido instaurada uma sindicância interna para apurar o ocorrido.

“O Condepe recebe as denúncias, vai até os locais, vê a veracidade, faz um relatório e aí dispara para o órgão competente que no caso ali era a Secretaria de Administração Penitenciária”, explica Cheila Olalla, ex-vice-presidente do Condepe e responsável pela visita à unidade penitenciária onde estava Augusto Olegário na época dos fatos.

Mesmo diante das informações contidas nesse relatório produzido pelo Condepe, a família de Augusto destaca a indignação pelo arquivamento do caso por parte da SAP e pela lentidão dos órgãos de investigar o caso e oferecer uma resposta sobre a situação.

Além do Condepe, da SAP e do Gecradi, a família levou a denúncia para a Coordenação de Políticas para a População Negra e Indígena (CPPNI), da Secretaria da Justiça e Cidadania (SJC) do Estado de São Paulo, e para parlamentares.

“Infelizmente, a gente tem que ficar lutando para provar as situações e para isso não ser arquivado. Eu tive que ir lá no Gecradi para falar com o promotor, porque ninguém estava dando atenção. Instituições foram criadas para defender o povo negro, mas não dão atenção”, comenta o líder comunitário Rodrigo Olegário.

“Infelizmente, a dor do povo negro é sempre mais pesada. Uma brutalidade dessa não deveria demorar e não ter punições. Não dar atenção é o mesmo que dar autonomia para essas barbáries continuarem. Além de sofrermos com as violências, também sofremos com esses descasos das instituições”, também destaca.

Posicionamentos

A Alma Preta Jornalismo indagou a Secretaria da Administração Penitenciária sobre como estão acompanhando o caso atualmente e sobre a situação atual dos agentes penitenciários envolvidos na denúncia. Em nota, a SAP informou que “não surgiram fatos novos ou alterações em face do que foi apresentado a esse órgão de imprensa em 2022, permanecendo a situação, portanto, inalterada”.

Também foi solicitado à SAP um posicionamento considerando o novo relato feito pela testemunha do caso. Em resposta, a SAP informou que “não recebeu nenhum novo documento em relação ao caso, que permanece inalterado”. A Secretaria de Administração Penitenciária também reitera que “tanto no âmbito administrativo quanto judicial optou-se pelo arquivamento pela ausência de provas que comprovassem as acusações feitas pelo sentenciado enquanto esteve naquele presídio”.

Já a Secretaria da Justiça e Cidadania (SJC), por meio da Coordenação de Políticas para a População Negra e Indígena (CPPNI) do Estado de São Paulo, informou que, em julho de 2022, um familiar entrou com uma nova denúncia sobre “possível injúria racial sofrida pelo preso do semiaberto da penitenciária de Presidente Prudente”.

“A investigação corre em sigilo na Comissão Especial Racial da SJC. Caso seja comprovada, o ofensor sofrerá aplicação das penalidades previstas na Lei Estadual nº 14.187/2010”, informou o órgão em nota. O CPPNI também aguarda um retorno da SAP sobre as alegações do arquivamento do caso.

A Alma Preta Jornalismo também entrou em contato com o Gecradi para ter mais informações sobre como estão acompanhando o caso atualmente, devido ao novo relato da testemunha entregue pela família de Augusto. Até o fechamento do texto, o órgão não enviou seu posicionamento.

O Condepe também foi contatado com pedidos de mais informações sobre a ação do Conselho no caso e sobre as respostas que tiveram dos órgãos envolvidos na apuração dos fatos. Na época da produção do relatório, o Condepe chegou a recomendar à direção da penitenciária a apuração interna para a responsabilização dos agentes envolvidos (quem agrediu e ameaçou), a transferência de unidade prisional do detento Augusto e solicitou cópia integral dos autos da sindicância interna instaurada. Segundo o Condepe, o relatório do caso foi encaminhado ao irmão de Augusto para as providências cabíveis.

Em nota, o Condepe explica que em 23 de setembro de 2021, Augusto Olegário Carmelita foi transferido para outra penitenciária, onde não mais sofreu situações de tortura. O Conselho também informa que, no âmbito criminal, consta que a direção da unidade prisional de Presidente Prudente, ao tomar ciência da denúncia, determinou a instauração de apuração preliminar, bem como a lavratura de boletim de ocorrência, porém isso só ocorreu em 22 de setembro de 2021, ou seja, quase 2 meses após a data da efetiva prática da tortura, de modo que o laudo de exame de corpo de delito não foi apto a registrar quaisquer lesões, sendo arquivado o inquérito penal.

O Conselho também informou que o ocorrido foi levado pela família de Augusto à Ouvidoria do Tribunal de Justiça de São Paulo, na forma de pedido de providências. Diante da ausência de provas da prática da tortura no momento, com exceção do relato da vítima, o representante do Ministério Público opinou pelo arquivamento dos autos. “A Defensoria Pública fora desconstituída como advogada do Sr. Augusto, de modo que seu advogado particular deveria dar andamento aos autos. No entanto, os autos acabaram sendo arquivados, em 9 de fevereiro de 2022, por decisão da juíza responsável, por inércia da parte interessada”.

“Acerca da denúncia de que referido pedido de providências foi arquivado, cumpre esclarecer que não cabe ao CONDEPE/SP atuar em casos individuais que tramitam no Judiciário, especialmente aqueles em que já há advogado constituído. Todas as ações do CONDEPE/SP foram adotadas a partir da provocação do denunciante Sr. Rodrigo Olegário Carmelita, de modo que o Conselho está à disposição para atuar dentro de sua competência legal”, finaliza o Conselho.

Cheila Olalla, ex-vice-presidente do Conselho, explica que a falta de estrutura jurídica e orçamentária não permite que o Conselho continue acompanhando os casos denunciados de forma ininterrupta. “O Condepe é um órgão que tem esse poder de fazer intervenção, que foi o que nós fizemos com a transferência do Augusto e, com isso, vindo nova denúncia, continuamos acompanhando. Antes de fechar o processo, é cobrado das autoridades qual foi os encaminhamentos em relação àquela demanda que foi aberta”.

Leia também: Testemunha denuncia agressão para acusar rapaz de assassinato

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