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Tinta Preta e Pele Escura: A necessidade de uma imprensa negra

Conheça a história dos jornais negros brasileiros e o porquê de suas existências
Exemplar do jornal "A Voz da Raça", de 18 de março de 1933

Foto: Reprodução

27 de junho de 2015

“O Governo, sendo composto de brancos, não deveria ser obedecido pelas classes heterogêneas.”

Assim declarava o jornal “O Homem de Cor” em sua primeira edição, de 1833. Junto com seus dizeres de alto teor político, nascia a chamada Imprensa Negra, cuja principal bandeira é a denúncia do racismo e a luta pela cidadania do negro no Brasil. Desde o século XIX, a Imprensa Negra cumpre esse papel. Data dos tempos da escravatura o texto negro pela emancipação.

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A imprensa é fundamental para a construção das narrativas do cotidiano. Em grande parte, é através da imprensa que conhecemos nosso mundo, adquirimos informações sobre nossa sociedade, sobre os acontecimentos políticos, sobre o que consumir, como agir e sobre o que esperar do futuro. É de se esperar que a imprensa, portanto, reflita sobre a realidade sendo representativa em sua constituição de profissionais e temas. Sabemos que não é o que acontece.

No Brasil a imprensa existe desde a chegada da família real portuguesa, em 1808, sendo até então proibida a circulação de qualquer jornal dentro do país. Entre os primeiros periódicos, encontram-se a “Imprensa Régia”, “A Gazeta do Rio de Janeiro”, e “O Correio Braziliense” — este último, impresso na Inglaterra, levava meses para chegar ao Brasil.

Quase tão velha quanto a imprensa comum, a Imprensa Negra existe desde 1833, e tem como pedra fundamental, o surgimento do jornal “O Homem de Cor”. Desde então, ela jamais deixou de existir, presente em quase todas as décadas da história brasileira através dos mais diversos periódicos, revistas e jornais, ligados ou não a movimentos políticos, e com variadas vertentes de pensamento.

Passaram por esses jornais intelectuais, militantes e escritores negros conhecidos, tais como Antonio Pereira Rebouças, Manoel Querino, José Correia Leite, Abdias Nascimento e Gustavo Lacerda, este último, ilustre fundador da Associação Brasileira de Imprensa, a centenária ABI — fato relevante que poucos conhecem. A imprensa brasileira muito deve aos jornalistas negros, entre os quais figuram nomes consagrados como José do Patrocínio, Luiz Gama e Machado de Assis.

A Imprensa Negra do século XIX toca no cerne da esfera pública quando eclode a discussão abolicionista, convertida em um grande movimento de massas da sociedade brasileira.

Ela não se cala quando, à entrada do século XX, nos víamos ainda conduzidos pela intensa racialização das atividades produtivas, mantenedoras de um desenho social marcado ainda hoje pelo racismo. O mesmo se segue com os tipos, penas e prensas, ao longo do século, desaguando nas autoestradas da informação moderna. Hoje, surgem muitos portais e sites de opinião negra que crescem em quantidade e influência na internet.

Uma necessidade que se impõe

No Brasil se observa uma insuficiência da mídia tradicional em abordar as pautas caras à maioria da população, que é negra. Segundo a pesquisadora Ana Flávia Magalhães Pinto: “A imprensa hegemômica não tem condições de registrar os problemas brasileiros reconhecendo a importância dessa população”. A Imprensa Negra precisa existir para dar visibilidade ao entendimento do Brasil a partir da experiência da maioria.

Desde a primeira edição de “O Homem de Cor”, a discussão da pauta racial é evidente. No cabeçalho do jornal, há lembrança explícita à formação multirracial do Brasil e exigência frente ao texto da constituição.

A Imprensa Negra do início do século XX é marcada pelo tom de reivindicação de inclusão na sociedade brasileira. Esse período dura até 1937, com a instauração do Estado Novo e o fechamento de partidos políticos e jornais. Havia nesse momento uma grande organização nacional de negros, a “Frente Negra Brasileira”, com qual estiveram ligados os principais jornais negros da época: “A Voz da Raça” e o próprio  “O Clarim d’Alvorada”, que girava sob a tutela de José Correia Leite.

Esse momento de início de século traz São Paulo como o principal local em quantidade de jornais negros. A rápida urbanização e industrialização da cidade, além dos planos de educação básica imprimidos no país à época, trazem um quadro de exclusão do negro dentro da cidade. É diante desse quadro que os jornais fazem suas reivindicações de inclusão e cidadania para o povo negro.

‘Realidade constitucional ou dissolução social

O Jornal “O Homem”, de Recife, dizia: “Realidade constitucional ou dissolução social”. Para o jornal, ou o país passava a valorizar as pessoas por seus talentos e virtudes, em detrimento da cor da pele, ou nunca o Brasil se constituiria como Nação.

Essa linha editorial já estava em jornais como o já citado “O Homem de Cor”, o “Brasileiro Pardo”, e “O Cabrito”, todos do Rio de Janeiro – RJ e publicados em 1833. Esse teor que urge na valorização do indivíduo por seus talentos está presente tanto antes quanto depois da abolição da escravatura, como nos jornais “A Pátria”, de 1889, “O Progresso”, de 1899, além do Jornal “Exemplo”, de Porto Alegre – RS, que existiu entre 1892 e 1930.

A ideia era valorizar pessoas “de cor”. Denunciar os limites da cidadania e fortalecer a comunidade negra do Brasil, política e culturalmente, oferecendo personalidades negras ilustres como exemplo. Esse mesmo teor político continua no século XX.

Imprensa é memória

“Para nós, olhando do presente para o passado, é uma possibilidade de perceber que as lutas que a gente vivencia hoje, tem um passado, elas tem uma trajetoria.  E que nós não estamos inventando.” – lembra Ana Flávia Magalhães Pinto, pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ana Flávia é militante negra, e escreveu seus trabalhos de mestrado e doutoramento sobre a Imprensa Negra.

Durante o período da ditadura civil-militar, entre 1964 e 1985, a Imprensa Negra também resistiu. É o caso da revista “Tição”, de 1978, de Porto Alegre, que além da denúncia ao racismo também critica os encaminhamentos dados à abertura. “Essa preocupação com a manutenção da memória, a reprodução de fatos históricos que marcam a trajetória de resistência é algo central ali. E inclusive um modo de se contrapor às práticas de silenciamento da resistência popular que tinham sido colocadas em curso pelo golpe civil-militar de 1964”.

A Imprensa Negra é um argumento fundamental, devido ao seu aspecto de documentação, de que as resistências negras são descontínuas. Ela evidencia uma continuidade na luta contra o racismo, em uma linha do tempo de quase duzentos anos de escritos acumulados.

“As pessoas podem não se conhecer, as pessoas podem não se referenciar, mas a luta contra o racismo no Brasil, se você olha a partir da Imprensa Negra, não fica uma década sem ter um registro de como essa luta está se processando”, afirma Ana Flávia.

A Imprensa cumpre papel de mantenedora da memória, e sua existência e ponderamentos sobre a sociedade levam à lona críticas que diminuem a luta racial no Brasil ou a colocam como influência apenas de lutas de outros países. O racismo sempre foi um problema da sociedade brasileira. Não se pode subestimar o impacto da escravidão no Brasil, afinal o país recebeu a maior parte das pessoas que foram traficadas durante a escravidão. As estatísticas mostram um número assustador. Durante todo o período de tráfico negreiro, o Brasil foi responsável por receber 40% do fluxo de escravizados. A maior parte dos descendentes da diáspora vivem em solo brasileiro.

Fazer imprensa negra: compromisso político

Para se manter, os jornais usavam assinaturas e vendas, mas havia o desafio de que pessoas negras  comprassem e assinassem os números devido à situação econômica da maioria delas. Esse sempre foi um problema, o que levou a maior parte dos jornais a parar as atividades em pouco tempo. É o caso do jornal “O Homem de Cor”, que não passou de 5 edições, ou mesmo “O Homem”, de Recife, que teve apenas 13 edições. No século XIX, apenas o jornal “Exemplo”, de Porto Alegre, teve certa longevidade, seguindo até a virada do século. Já no século XX, o problema continuava, e muitas experiências não duraram muito tempo pelos mesmos motivos.

O jornal “Ìrohìn” (notícia em Yorubá) que existe desde 1996, é um dos casos mais longevos. No século XX, os jornais tiveram maior alcance e financiamento, já que as organizações negras, como clubes sociais e círculos políticos, serviam como público. Porém, os editores dos jornais tinham outros empregos. Como afirma a pesquisadora Ana Flávia Magalhães Pinto, “Fazer Imprensa Negra, era um compromisso político, não um ganha-pão. E ainda hoje é assim”.

Quase 200 anos se passaram, e a tinta negra continua pontuando o racismo

A maior parte dos profissionais jornalistas são brancos, e a cobertura da mídia tradicional pouco fala da realidade do povo negro nos dias de hoje. É como se vivêssemos um mundo idealizado, que superou as diferenças de raça.

Ano após ano, dados e mais dados são produzidos no Brasil revelando as diferenças sócio-econômicas entre negros e brancos. São os negros, a maior parte dos encarcerados, são os negros a maior parte dos assassinados, são os negros os com menor acesso à educação e saúde, os mais atendidos pelas políticas sociais como “Bolsa Família” e “Minha Casa, Minha Vida”, e também são eles os com mais baixa remuneração no mercado de trabalho. Algo de simples percepção a qualquer um que se debruce sobre a história do Brasil, parece uma mentira deslavada quando temos como filtro da realidade, a mídia.

Na era da internet, multiplicam-se os meios de comunicação com a temática racial no país

Uma das características positivas desse momento, além da ampliação das possibilidades de acesso e produção de conteúdo pela população de cor, é a presença maçiça de mulheres negras na Imprensa especializada, como é o caso das  Blogueiras Negras e do portal  Geledès. Se no século XIX elas estavam mais envolvidas na organização dos movimentos políticos, e no século XX passam a ter destacada participação na escrita, na era da internet, a Imprensa Negra brasileira tem assistido a um protagonismo feminino na produção de conteúdo.
Outros exemplos de Imprensa Negra na internet são os portais Africas e Correio Nagô, a revista O Menelick e o próprio Alma Preta. Assim como em outros momentos de nossa curta história democrática, a Imprensa Negra e os movimentos de negros se organizam e crescem, ao passo que cresce também o conflito.

A injustiça racial persiste, e diante dela as vozes negras não se calam.

Para saber mais:

– Ana Flávia Magalhães Pinto – “De Pele Escura e Tinta Preta” – Dissertação de Mestrado

– Ana Flávia Magalhães Pinto – “Fortes laços em linhas rotas : literatos negros, racismo e cidadania na segunda metade do século XIX” – Tese de Doutorado

– Ariovaldo Lima Júnior – Jornal Ìrohìn: Estudo de caso sobre a relevância educativa do papel da imprensa negra no combate ao racismo (1996-2006) – Dissertação de Mestrado

– Gilmar Luiz de Carvalho – “A Imprensa Negra Paulista entre 1915 e 1937: características, muidanças e permanências” – Dissertação de Mestrado

  • Solon Neto

    Cofundador e diretor de comunicação da agência Alma Preta Jornalismo; mestre e jornalista formado pela UNESP; ex-correspondente da agência internacional Sputnik News.

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