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Um terço dos moradores da Maré tem a saúde mental impactada pela violência

Dados da pesquisa 'Construindo Pontes' revelam que 75,5% dos moradores apontam a violência como a principal questão negativa de morar na Maré; ansiedade e depressão são os diagnósticos mais comuns 

Texto:  Caroline Nunes | Edição: Nadine Nascimento | Imagem: Divulgação/Redes da Maré

Violência no Complexo da Maré

24 de agosto de 2021

A pesquisa ‘Construindo Pontes’, realizada nas 16 favelas que compõem o Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, mostra que um terço dos moradores tem a saúde mental afetada pela violência. Os resultados da pesquisa ainda apontam que os residentes da Maré passam por situações de extrema violência, como estar em meio a tiroteios ou testemunhar assassinatos, e afirmam que vivem permanentemente com medo de sofrer ou testemunhar esses casos. A análise é inédita, apoiada pela Redes da Maré, e levantou dados entre 2018 e 2020.

De acordo com a pesquisa, 63% das pessoas sentem medo (sempre ou muitas vezes) de ser alvejada por uma arma de fogo na Maré. Um número ainda maior (71%) sente medo constante (ou muitas vezes) de que alguém próximo seja atingido. O temor da violência armada – que muitas vezes incluem equipamentos de guerra como granadas e fuzis – acompanha diariamente a maioria dos moradores.

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Outro dado é que 44% dos entrevistados relataram ter estado em meio a um tiroteio nos 12 meses anteriores, sendo que destes, 73% passaram por esta experiência mais de uma vez. Entre os que sofreram exposição direta a situações violentas, 44% acreditam que sua saúde mental foi prejudicada.

Mesmo que não tenha testemunhado um tiroteio, um alto número de moradores (cerca de 25,5%) teve alguém próximo ferido ou assassinado. Quase a mesma quantidade (24%) de moradores e moradoras adultos da Maré viram alguém ser espancado ou agredido nos 12 meses antes da pesquisa. Para 15% dos entrevistados, isso aconteceu mais de uma vez.

Placa em homenagem às vítimas de violência no Complexo da Maré | Créditos: Divulgação/Redes da Maré

“As dores e os sintomas de saúde mental não são evidentes como os de uma perna quebrada. Eles não se tratam com um remédio como os que usamos para dores de cabeça”, alerta o diretor teatral e principal pesquisador de ‘Construindo Pontes’, Paul Heritage.

Nem dentro de casa os moradores se sentem protegidos: 13% deles tiveram suas casas invadidas nos 12 meses anteriores à pesquisa – percentual que aponta para um total de 13.357 domicílios que passaram por invasões, muitas vezes acompanhadas de violência verbal, extorsão e perdas materiais. Entre esses moradores, 47% passaram por esta situação mais de uma vez.

“Estas constatações desafiam a ideia de que as populações de favelas se acostumaram com a violência armada em seu cotidiano: 75,5% dos moradores apontam a violência como a principal questão negativa de morar na Maré”, diz a pesquisa.

Ansiedade e depressão são os diagnósticos mais comuns

As desordens mentais mais comuns relatadas pelos moradores foram episódios depressivos (26,6%) e de ansiedade (25,5%). Das pessoas que estiveram em meio a tiroteios, 12% relatam pensamentos sobre suicídio e 30%, sobre morte. Os moradores do Complexo da Maré também apresentaram sintomas físicos, como dificuldade para dormir (44%); perda de apetite (33%); vontade de vomitar e mal estar no estômago (28%); e calafrios ou indigestão (21,5%).

“A discussão sobre saúde mental de moradores de favelas e periferias, no contexto da violência a que estes territórios são submetidos, é urgente e fundamental”, avalia a diretora da Redes da Maré, Eliana Silva. “São situações cotidianas, que restringem a circulação das pessoas, produzem traumas, afetam a saúde física e mental e reduzem a confiança das pessoas nas instituições – já que muitas vezes é a própria polícia a responsável pelas violações de direitos”, completa.

Um dos efeitos mais graves da violência armada nos territórios de favela, segundo o estudo, é a imposição de barreiras para o acesso a serviços e equipamentos públicos, incluindo aqueles que dão suporte aos moradores em relação à saúde mental. De acordo com os dados da pesquisa, 54% dos adultos da Maré sofreram alguma limitação no acesso a equipamentos públicos em decorrência de situações de violência.

Outros dados

O conjunto de favelas do Complexo da Maré abriga mais de 47 mil domicílios e cerca de 140 mil moradores, dos quais 37% são nordestinos. Na Maré funcionam mais de 3 mil estabelecimentos comerciais, 50 escolas, 7 unidades de saúde e uma UPA. Apesar destes números, a oferta de políticas públicas ainda é insuficiente, tanto em qualidade quanto em quantidade, para assegurar os direitos básicos aos moradores, segundo a pesquisa.

Leia também: ‘Covid-19: vacinação em massa supera expectativas no Complexo da Maré’

Em 2020, em meio ao contexto da pandemia do novo coronavírus, e graças à mobilização de moradores de favelas, coletivos, organizações e movimentos sociais, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu decisão liminar suspendendo operações policiais em favelas do Rio de Janeiro, salvo em casos excepcionais. A medida resultou em uma redução de 59% das operações policiais naquele ano. Foram registradas cinco mortes nessas ações; os feridos somaram 17, segundo o estudo. Os atendimentos em unidades de saúde foram suspensos em oito dias.

Redes de apoio

A pesquisa ainda mostra que, para os moradores da Maré, a manutenção de laços de afeto e apoio mútuo, vínculo a uma religião e o acesso a espaços de lazer são fatores importantes na promoção do bem estar. Nas entrevistas, a população mostrou satisfação com aspectos da sua vida, como família e amigos.

Dos entrevistados, 80% disseram estar satisfeitos na relação com a família e 85% com as pessoas com quem moravam. Além disso, 82% disseram ter ‘um amigo de verdade’ e 66% declararam ter estado com um amigo na última semana. A maioria da população (69%) afirmou estar satisfeita com o número e qualidade de suas amizades.

Nas análises sobre resiliência, a pesquisa comparou os resultados acerca da percepção de bem estar aos indicadores sintéticos, como o Índice de Exposição à Violência Armada (IEVA). De modo geral, os menores níveis de satisfação e bem-estar estão associados a maior exposição à violência armada. “Manter uma relação conjugal, por exemplo, está associado a uma menor exposição aos episódios de violência armada, independentemente da idade”, salienta o estudo.

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