“Dramas para negros e prólogo para brancos” é o nome do segundo ato da exposição de Abdias Nascimento e do Museu de Arte Negra (MAN) na Galeria Mata do Inhotim, localizado em Brumadinho/MG, e que estreou no dia 28 de maio. A mostra expõe o legado artístico e político contra o racismo encabeçado pelo intelectual brasileiro por meio da criação do Teatro Experimental do Negro (TEN) e da construção do MAN.
Resultado de uma curadoria conjunta entre o Inhotim e o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), a exposição reúne diversos materiais, como pinturas, cartas, textos, fotografias e vídeo. Todo o acervo revela a trajetória multidisciplinar do poeta, escritor, dramaturgo, curador, artista plástico, professor universitário, pan-africanista e parlamentar de Abdias (1914-2011), que trilhou um ativismo pela valorização da cultura negra e dos valores ancestrais africanos.
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“Não se trata somente de uma exposição artística, é um ato político que conta a trajetória de um dos militantes dos movimentos negros mais importante do século 20”, destaca Julio Menezes, pesquisador do Ipeafro e um dos curadores da exposição.
Segundo Ato da exposição de Abdias Nascimento | Crédito: Fernanda Rosário/ Alma Preta
Drama para negros
O Segundo Ato do projeto, sob o signo de Oxóssi, que é o orixá das matas e do conhecimento, destaca um período marcado pelo teatro na trajetória e formação de Abdias.
Idealizado pelo intelectual, o Teatro Experimental do Negro atuou como uma rede de articulações e ativismos entre 1940 e 1960. O material informativo exposto na mostra revela que o intelectual teve seu contato definitivo com o teatro durante as viagens que fez junto ao grupo de poetas da Santa Hermandad Orquídea, grupo fundado no Rio de Janeiro em 1939 e formado pelos argentinos Godofredo Iommi, Efraín Tomás Bó e Juan Raúl Young e os brasileiros Gerardo Mello Mourão e Napoleão Lopes Filho, além do próprio Abdias.
Em uma viagem realizada pela irmandade em 1941, Abdias assistiu ao espetáculo “O Imperador Jones”, do dramaturgo Eugene O’Neill, na capital do Peru. A peça foi interpretada pelo grupo argentino Teatro del Pueblo e um ator branco fazia o protagonista com o rosto pintado de preto, uma prática racista chamada blackface.
O fato marcou profundamente Abdias, que decidiu seguir para Buenos Aires e se aproximar do grupo argentino para estudar teatro como prática artística e ação política. Em regresso ao Brasil, o ativista decide criar um organismo teatral aberto ao protagonismo negro para conquistar espaço nas artes cênicas e ter a população negra como agente na produção e difusão de conhecimento.
O TEN é, então, criado em 1944 no Rio de Janeiro por Nascimento. A iniciativa objetivava criar um espaço de formação artística e cidadã para a população negra trabalhadora, com um núcleo educativo e cultural que propunha alfabetização, realização de peças de teatro e apoio a outros projetos artísticos.
Léa Garcia em cena de “O imperador Jones”, 1953 | Crédito: German Lorca/ Ipeafro
Elisa Larkin Nascimento, diretora do Ipeafro, explica que o TEN nasce com a proposta de trazer para a luta contra a discriminação racial a afirmação da matriz cultural africana na sua acepção política.
“O teatro brasileiro não oferecia nenhum texto em que o elenco negro pudesse exercer o seu protagonismo. Eram sempre papéis estereotipados e o TEN traz o artista negro para o palco e também propicia dramaturgia que traga para o palco brasileiro os temas existenciais do povo negro”, destaca Elisa, também viúva de Abdias.
Em 8 de maio de 1945, a iniciativa teve sua estreia no Theatro Municipal do Rio Janeiro, não por acaso, com a peça o “Imperador Jones”, de Eugene O’Neill. O protagonista foi o ativista e intelectual negro Aguinaldo de Oliveira Camargo.
Ao longo dos seus 24 anos de atuação, o TEN montou obras de autores brasileiros e estrangeiros com diferentes parcerias. Nessa época, além de ator e diretor, Abdias se consagra como dramaturgo, com as montagens de Rapsódia Negra (1952) e Sortilégio (1957), que foi escrita em 1951 e censurada duas vezes até sua primeira apresentação devido às críticas à visão de “democracia racial” que continha.
“No Brasil, o mito das três raças era indiscutível. Discutir contra isso era prisão, era perseguição política. Então, de certa forma essa censura diz muito sobre esse período, diz muito sobre o alcance dessa luta também”, explica o curador do Inhotim Lucas Menezes.
“Drama para negros e prólogo para brancos” é o nome de uma antologia de peças organizadas pelo TEN em 1961 e que destaca o pensamento vanguardista de Abdias por uma dramaturgia que se volta para as suas bases africanas.
“No prólogo para brancos, o Abdias escreve e já traz ideias que antecipam questões que vão ser levadas a uma consideração mais ampla muito mais tarde, como a origem do teatro não ser na Grécia, mas na África, no Egito”, ressalta Elisa Larkin Nascimento.
Elisa Larkin e Julio Menezes, do Ipeafro | Crédito: Fernanda Rosário/ Alma Preta
O TEN perdurou até 1968 com suas atividades em decadência por conta da conjuntura política do país com a instauração da Ditadura Militar em 1964. Foi dentro de uma das atividades da instituição, o 1º Congresso do Negro Brasileiro, realizado em 1950 na cidade do Rio de Janeiro, que surgiu a ideia do Museu de Arte Negra, com sua primeira exposição em 1968 em parceira inédita com o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.
“O Museu de Arte Negra, com a missão de divulgar a influência africana na arte moderna ocidental e a pluralidade da produção artística da diáspora africana, reuniu obras de artistas nacionais e internacionais. À época, uma iniciativa pioneira”, explica o material da exposição.
O Ipeafro foi criado em 1981 por Abdias Nascimento e Elisa Larkin Nascimento, após o exílio de Abdias que durou 13 anos por conta do acirramento da ditadura no Brasil. O Instituto surge com a missão de guardar o acervo artístico e documental de Abdias e das organizações que ele fundou: Teatro Experimental do Negro e Museu de Arte Negra.
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Jornal Quilombo
Entre 1948 e 1950, o TEN publicou também o jornal “Quilombo – Vida, problemas e aspirações do Negro”, que buscava promover discussões no campo da arte e da cultura na intersecção com a política.
Jornal Quilombo | Crédito: Fernanda Rosário/ Alma Preta
De acordo com Julio Menezes, o jornal Quilombo surge como órgão de imprensa do TEN, não só para fazer reportagem, mas para também ser um porta-voz das ações que vinham sendo desenvolvidas pelo teatro desde 1944, quando foi fundado.
“O jornal Quilombo surge justamente trazendo para a primeira capa do jornal a questão do teatro, o protagonismo negro que vinha sendo feito pelo Teatro Experimental do Negro, as grandes pautas que eram discutidas ali por aquele grupo de intelectuais, por exemplo. A causa das trabalhadoras doméstica é fortemente discutida dentro do jornal Quilombo, dentro das reportagens, algo que só se torna um direito das trabalhadoras domésticas neste século”, explica Menezes.
O pesquisador do Ipeafro também destaca que o jornal foi visionário e pleiteava direitos para a população negra, além de fazer interlocução com o mundo africano e com o mundo americano através de intercâmbio de jornalistas, trazendo sobretudo a questão das artes, do teatro, das artes plásticas e da poesia para o centro de suas páginas. A voz das mulheres também era destacada na coluna “Fala a mulher”, de Maria Nascimento.
“Ele saiu em dez edições e de fato é uma grande referência da mídia negra hoje e foi na época, sem dúvida, um jornal de vanguarda”, comenta Menezes.
Exposição em diálogo com outras mostras
Também no dia 28 de maio estrearam no Inhotim as exposições “Looking for Langston”, de Isaac Julien, a “Ocupação Biblioteca Inhotim”, de Jaime Lauriano, e a “Instalação Birutas”, de Arjan Martins. Todos também artistas negros e que dialogam com os assuntos e temas tratados na exposição do Museu de Arte Negra.
Ocupação Biblioteca Inhotim, por Jaime Lauriano | Crédito: Fernanda Rosário/ Alma Preta
“Você tem o Arjan, que tem um trabalho importante que dialoga com a instalação dele que são umas birutas que fazem a relação com o trânsito de corpos negros. Tem também o trabalho do Isaac Julien, que registra toda uma trajetória negra a partir dos Estados Unidos. Todos esses trabalhos dialogando obviamente com o trabalho de Abdias Nascimento, que é a grande exposição aqui do momento e a grande exposição que está abrindo espaço aqui no Inhotim, trazendo e promovendo de fato uma mudança institucional”, ressalta Julio Menezes.
O Segundo Ato da Exposição do Museu de Arte Negra segue até outubro. Mais informações sobre as exposições e instalações podem ser acessadas no site do Inhotim.
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Confira fotos do Segundo Ato do Museu de Arte Negra em Inhotim:
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