Amanda Cristina, ou ‘Amanda NegraSim’, seu nome artístico, natural de Cotia, na Região Metropolitana de São Paulo, é cria do hip-hop, mas não se delimita enquanto artista pertencente ao estilo. Aos 41 anos, a também atriz e compositora, desempenha papel fundamental na abertura de novos horizontes junto às mulheres negras da periferia paulistana. Desde 2015, ela é responsável pelo projeto ‘Trançado Periférico, Mulher Negra Criativa’, que cruza arte, educação e afroempreendorismo pelo ensinamento ancestral das tranças e já formou mais de 100 alunas.
O interesse e encantamento pelo poder da técnica de anos começou dentro de casa, por admiração à desenvoltura de sua mãe, Lucila Fátima, já falecida, mas que continua uma inspiração que a motivou a passar seus ensinamentos para frente. Em conversa com a Alma Preta Jornalismo, Amanda conta que, ainda na infância, na década de 1980, teve esse referencial que despertou seu interesse e trouxe a compreensão de que ela poderia encontrar uma potência que só pertencia às mulheres negras.
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“Na minha lembrança, minha mãe sempre trançou. Lembro dela trabalhar durante o dia, mas à noite ainda tinha força para encher a nossa casa de outras pessoas para trançar. Minha casa virava um salão! Nunca fiz curso e escola. Todo o meu aprendizado foi dado por ela, a quem eu acredito ser um agente de revolução pelas ferramentas que nós tínhamos na época. Além disso, me admirava, naquela época, ela já prezar pelo cuidado com os cabelos das pretas e dos pretos”, relembra.
Amanda ainda compartilha lembranças das idas ao centro da cidade com a sua mãe. Ela conta que, entre os anos 1980 e 1990, não havia material adequado ou suficiente para a mãe atender à demanda que tinha no seu empreendimento. Para fazer os penteados, ela buscava os chamados “cabelos de boneca”, material que era vendido como um nylon enrolado, diferente do que se encontra hoje, como o “jumbo”, mais próximo da aparência do cabelo humano.
Além da sua base dentro de casa, ela referencia a cultura do hip-hop como uma escola que também a ajudou em seu autoconhecimento, enxergando força não só para si, mas para as demais mulheres negras que a cercavam. Amanda conta que o contato com o movimento, na juventude, fez com que ela entendesse, ainda mais, a importância do autocuidado e, principalmente, repassar o que havia aprendido.
“Entendi que aquele ensinamento que eu tinha em casa poderia ser levado para outras mulheres, não poderia ficar restringido a mim, assim como a minha mãe fazia. Até então, não tinha isso como um projeto, mas já tinha a vontade de mostrar para as outras mulheres que, além do autocuidado, na trança havia uma oportunidade de empreender, trazer renda, além de, ao mesmo tempo, entender as suas raízes e a nossa identidade”, pontua.
Poucos anos depois, Amanda já passou a atender na sua casa as mais variadas demandas de penteados, formas e texturas de tranças. Em paralelo existia o interesse de crescer artisticamente e ter voz por meio do hip-hop. Dessa forma, conseguir ser uma agente de transformação na periferia, habilitando técnicas e ferramentas para que, assim como ela, outras mulheres crescessem.
Com o tempo, além de trançar essas mulheres, Amanda passou a ensiná-las. Em 2015, por meio do seu coletivo, o Cultural Zungueira Produções, a multiartista passou a oficializar as formações, buscou incentivos, material e disponibilizou vagas para alunas. Nesse momento, deu-se início o projeto “Trançado Periférico – Mulher Negra Cultura Ativa”.
Saber ancestral
Em 2017, em viagem à África, o desejo de aumentar as vagas para as formações cresceu. Amanda conta que o carinho em passar o que sabia sobre as tranças ganhou ainda mais força quando teve a possibilidade de observar, com detalhes, o saber ancestral.
“Foi uma oportunidade de me conectar com a minha história, me identificar e, acima de tudo, acreditar que eu poderia fazer o mesmo com as alunas. Acreditei ainda mais no poder da coletividade e no trançado, entendendo que o meu propósito, também, era fazer com que elas entendessem que a trança tem poder de cruzar histórias e a nossa força ancestral”, conta.
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Hoje, o projeto, que começou com apenas 20 vagas ofertadas, é compartilhado por mais de 100 alunas. Iniciado na Cidade Ademar, Zona Sul da Capital Paulista, o espaço de formação acabou sendo transferido para a “Favelinha City”, na Vila Joaniza, onde também funciona a Biblioteca Luísa Mahin. A iniciativa acabou estimulando a criação de outras formações, como cursos de leitura, cultura, pinturas, produção cultural e mais.
“Sempre me pego pensando como é realizador. Principalmente, ver mulheres negras, que chegam no espaço do curso e podem compartilhar das suas vivências com as demais, não só das tristezas, mas dando boas risadas e se identificando entre elas. Queria isso, que elas se vissem ali enquanto potências e acreditassem na importância do aquilombamento”, pontua Amanda.
Hoje, o projeto, que começou com apenas 20 vagas ofertadas, é compartilhado por mais de 100 alunas. Representatividade é pautada até no material disponibilizado para a formação. (Imagem: DIvulgação)
Projeto ganha ramificações
Como forma de propagar todo o aprendizado sócio-identitário na periferia, o projeto de Amanda NegraSim foi materializado em livro, assinado pela artista desde a composição da capa, com desenhos feitos pela multiartista, até a linguagem escolhida para dialogar com todas as idades. O registo é intitulado de forma homônima ao projeto: “Trançado Periférico, Mulher Negra Cultura Criativa”.
A publicação propõe um olhar mais atento, profundo e qualificado sobre o universo das tranças, uma vez que elas tiveram a potência de atravessar o oceano, enfrentar a opressão do processo de escravização, e é hoje um retrato da diáspora, uma
força simbólica para a população negra.
O período de formação e troca, que iniciou em 2015, também foi registrado em formato de vídeo. O projeto ganhou uma websérie, de mesmo nome. Durante 6 meses foram gravadas oito episódios e vídeos bônus de alunas que participaram do curso.
Por mais educação e mulheres negras valorizadas
Sobre a expansão da iniciativa, Amanda NegraSim revela certa dificuldade por falta de incentivo público. O último investimento realizado, por edital, foi finalizado em janeiro. Apesar disso, os avanços do curso e o reconhecimento da periferia sobre a importância do projeto despertou o interesse de doadores, que mais mulheres negras se formem e conquistem sua autonomia.
“Nós estamos nos organizando, como podemos, para uma nova turma começar. No entanto, as alunas antigas continuam no curso buscando, cada vez mais, se aperfeiçoarem; Ainda não temos uma nova data, por ainda estarmos pensando, por exemplo, como podemos custear as demais professoras para que elas permaneçam em sala de aula”, conta.
Com estrutura, Amanda deseja que a arte-educação seja uma constante nas periferias e que mais mulheres negras sejam valorizadas, que empreendam e acreditem nos seus trabalhos. Questionada em como quer vê-las em um futuro breve, a multiartista resume em uma palavra: “voando!”.
“Quero que abram salão, virem produtoras, escritoras, trancistas, mulheres de formação e opinião, poetas, MC’s, o que elas quiserem ser. Estou cansada de pensar em mulher negra inserida em uma narrativa de dor. A ideia não é correr em uma ladeira e, sim, correr no plano, tranquila. Meu desejo é que elas passem o conhecimento absorvido para frente e, no mais, voem!”, exclama.
Convite e denúncia
Junto às outras mulheres negras, do Coletivo Mulheres Negras da Quebrada, a qual a Amanda NegraSim também faz parte, ela aproveita o espaço para fazer um convite. Em julho, acontece, em São Paulo, o Festival Tereza de Benguela, que visa fortalecer o trabalho independente artístico de mulheres negras produtoras culturais.
Na sua quarta edição, o evento segue com o compromisso de começar no Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra e o Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, dia 25, e finalizar no dia 31, Dia da Mulher Africana.
“Nós precisamos de oportunidades, emprego e renda. Em comemoração a essas datas, além de relembrarmos nossas lutas, queremos ser valorizadas, principalmente, por suprimos, com nossas atividades, uma falta de incentivo artístico à população que tem dificuldade ao acesso à cultura. Para este festival, queremos que não só nós, mas todas as mulheres negras periféricas, sejam contratadas”, finaliza.
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