Apesar do imaginário nacional restringir a ideia de que a censura durante a ditadura militar ocorreu apenas a setores de classe média, as escolas de samba passaram por diversos processos de silenciamento
Texto / Pedro Borges | Edição / Simone Freire | Imagem / Roger Cipó – Olhar de um Cipó
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As escolas de samba de São Paulo passaram por um processo de censura e silenciamento durante o regime militar. Os ataques simbólicos e físicos por parte da ditadura podem ser descritos em três episódios e contra três escolas de samba tradicionais da cidade: Camisa Verde e Branco, Unidos do Peruche e Vai-Vai.
Cada um dos casos demonstra como o regime atuou para censurar o samba na cidade de São Paulo. Os depoimentos de sambistas da época são relatos de como essas escolas e a comunidade negra resistiram à ditadura militar, que vigorou entre 1964 e 1985.
Sou Mestre-Sala, João Cândido, o guerreiro
Simone Tobias, neta do fundador do Camisa Verde e Branco, Inocêncio Tobias, e presidenta da agremiação entre 2005 e 2007, era pequena na época da ditadura. Ela, contudo, lembra que os enredos, sambas-enredo, fantasias e alegorias precisavam ser enviados aos militares para serem aprovados pelos militares.
Esse processo se iniciou com a criação do Ato Institucional Número 5, conhecido como AI-5, aprovado em 13 de dezembro de 1968. “A ditadura militar foi um período de repressão para a grande maioria da massa. A gente era reprimido como eram todos”, afirma a ex-presidenta.
Em 1983, o Camisa Verde e Branco apresentou como proposta de enredo uma homenagem a João Cândido com o título “A Revolta da Chibata. Sonho, Coragem e Bravura. Minha história: João Cândido, Um Sonho de Liberdade”. O samba-enredo ecoava: “Assim, o tal Catete enganava / O mundo inteiro com a anistia aclamada / Na Ilha das Cobras a vingança foi voraz / Ignoraram a bandeira da paz / E o sofrimento rumo à Amazônia / Selava destinos, fim da vida ou escravidão / Glória ao nosso povo brasileiro / Meu sonho hoje é verdadeiro / Sou Mestre-sala, João Cândido, o guerreiro”.
Com a restrição a qualquer manifestação contrária ao regime, um carnaval em homenagem a João Cândido, líder da Revolta da Chibata, e com as palavras “Um sonho de liberdade” impossibilitaram a aprovação. No lugar, o Camisa Verde e Branco colocou na avenida o enredo, “Verde que te Quero Verde”, e conquistou o 5° lugar na competição daquele ano.
“A ditadura militar ‘sugeriu’ que não se fizesse. A gente conseguiu realizar esse sonho [de contar a história de João Cândido], que era o sonho do meu pai, em 2003”, conta Simone Tobias, em referência a Carlos Alberto Tobias, presidente do Camisa de 1980 a 1990.
Ao apresentar o samba no Anhembi em 2003, o Camisa Verde e Branco conquistou o 6° lugar no grupo especial. Depois, em 2017, o enredo foi reeditado no Grupo de Acesso I, onde se encontra a escola hoje. Nesta edição, o Camisa Verde e Branco conseguiu o 4° lugar.
Liberdade, Liberdade, palavra singela
A Unidos do Peruche também enfrentou problemas relacionados a um samba enredo. Em 1972, a escola queria colocar na avenida o mote “Heróis da Independência”, com letra escrita por Geraldo Filme, em tom de exaltação à liberdade: “Chamamos os heróis da independência / Presente presente / Trazendo o fogo sagrado da pátria / Iluminando quem nos fez independente / Lá nas Minas Gerais / Houve o movimento da Conjuração / Foi a Bahia e Pernambuco / E em São Paulo foi a decisão / Glória aos heróis que tombaram / Para nos dar um Brasil um novo / Homens que não mediram sacrifício / Pela independência do seu povo Liberdade, Liberdade, palavra singela / Fosse eu pintor / Tua grandeza eu fazia em aquarela”.
Carlos Alberto Caetano, conhecido como Carlão do Peruche, na obra “O Cardeal do Samba”, um livro de memórias do sambista, conta que estava em atividade no Estádio do Pacaembu, quando foi avisado pelos colegas da Unidos do Peruche sobre uma invasão na escola por parte dos militares.
Quando chegou lá, a escola estava metralhada, as fantasias e os instrumentos estavam quebrados. Segundo o fundador da Unidos do Peruche, os policiais agrediram seus filhos, sua companheira e outros integrantes da escola.
Carlão lembra que às 2h da manhã, os policiais voltaram, apontaram uma arma para ele e disseram: “Corre, negro”. Ele se recorda de receber, depois da ameaça, uma pancada de cassetete, que quebrou uma das suas costelas, algo que carrega até os dias de hoje e causa dificuldade para respiração.
Dias depois, Seu Carlão recebeu uma intimação para ir ao DOPS, na região da Luz, para prestar depoimento e dar explicações sobre o enredo. Carlão teve de elucidar que não era comunista e que o samba não era político, para então ser liberado pelos policiais.
Geraldo Filme, no último ano que desfilou com a Unidos do Peruche antes de ir para o Vai-Vai, ficou sumido por algumas semanas. Seu Carlão foi a casa do amigo procurá-lo, quando ouviu da companheira do sambista: “Achei que ele estava no barracão, tem uns dias que não aparece em casa”.
Passados alguns dias, Geraldo Filme reapareceu, para o alívio de Carlão, e explicou que ficou preso por mais de um mês pelo regime. As acusações eram de que Geraldo Filme participava de articulações políticas com Solano Trindade, poeta com passagem marcante pela Vai-Vai, na região de Embu. Como não provaram nada contra Geraldo Filme, decidiram liberá-lo.
Com o carnaval próximo e alegorias e fantasias destruídas, a Unidos do Peruche contou com a solidariedade das co-irmãs para desfilar. Seu Carlão se recorda do apoio dado pelo Camisa Verde e Branco, Vai-Vai e Mocidade Alegre. “No carnaval negro, a solidariedade e a amizade são maiores do que qualquer rivalidade”, disse Carlão, em seu livro de memórias.
Silêncio, o Bexiga está de luto
Um dos casos mais violentos durante a ditadura ocorreu na escola de samba Vai-Vai, resultado do assassinato do mestre de bateria da agremiação da época, reconhecido como um dos melhores de São Paulo de todos os tempos: Pato N’água.
Fernando Penteado, integrante da velha guarda da Vai-Vai, conta que o apitador da escola era um dos mais respeitados da época, tanto que chegou a dirigir a bateria da rival Camisa Verde e Branco, e tinha “passe livre” em qualquer área. “Ele tinha ouvido absoluto, identificava de longe se alguém havia dado uma batida a mais”.
O apitador da Vai-Vai, conhecido como um sujeito valente, foi encontrado morto em Suzano (SP), em uma lagoa, sob a alegação de afogamento, no ano de 1967. Para Fernando Penteado, Pato N’água foi assassinado e jogado em uma lagoa como forma de provocação ao nome do sambista.
Seu Carlão do Peruche, Geraldo Filme, entre outros, foram até a delegacia em Suzano para reconhecer o corpo de Pato N’água. O fundador da Unidos do Peruche se recorda de ver na jaqueta do amigo um furo, que parecia ser o de um revólver. “Mataram o Pato N’água. Até hoje tenho comigo que foi o esquadrão da morte. Época da ditadura. A Rota, o DOPS, a Polícia do Exército, todos eles tinham esquadrão da morte”, conta Seu Carlão, no seu livro de memórias.
O assassinato de Pato N’água ficou imortalizado no imaginário do sambista paulista, em especial por conta da homenagem feita por Geraldo Filme, na letra “Silêncio no Bexiga”: “Silêncio o sambista está dormindo / Ele foi mas foi sorrindo / A notícia chegou quando anoiteceu / Escolas eu peço o silêncio de um minuto / O Bexiga está de luto / O apito de Pato n’água emudeceu”.