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Cannibal, a voz da periferia que a violência não calou

Marconi de Souza Santos teve sua infância na periferia do Recife salva pela música e se destacou no cenário do punk rock à frente da banda Devotos
Cannibal se apresenta com a Orquestra Social do Centro Dom João Costa, que forma músicas que sonham alto como o cantor de punk.

Foto: Arquivo Dom João Costa

20 de outubro de 2024

Por: Adriana Amâncio

Segundo os Institutos de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps) e Çarê, em apenas uma década, homens negros morreram mais de armas de fogo em comparação com os brancos. Marconi de Souza Santos, homem negro, 53 anos, acredita que escapou dessa estatística pela música.

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Nascido no bairro do Alto José do Pinho, uma das favelas com maior potencial cultural do Recife (PE), mas igualmente marcada pela falta de serviços básicos como creche, saneamento e fornecimento regular de água, o que favorece a  violência e o tráfico, ele resume a sua trajetória da seguinte maneira: “Puseram em minhas mãos um contrabaixo, antes que estas fossem ocupadas com uma arma ou um papelote de droga.”

A cultura, a dança e a música pulsavam na comunidade, mas a violência e a intensa privação de direitos básicos suplantavam tudo. Mais do que isso, resumiam a imagem do território na mídia apenas como um lugar violento. “A gente via muitas coisas perigosas na comunidade”, afirma o hoje músico e vocalista da banda punk Devotos, Cannibal, nome artístico assumido por Marconi há 30 anos. 

Essa trajetória foi interrompida quando ele foi matriculado na escola do Centro Dom João Costa, ONG que oferece atividades de educação e arte às crianças do bairro. O contato com a escola transformou o jovem, que alçou voos gigantes. 

Com a Devotos, Cannibal chegou ao palco do Rock in Rio, fez o bairro ser visto com outros olhos e recebeu, ao lado dos colegas de banda, uma homenagem na Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (Alepe).

Filho adotivo, Marconi dos Santos Souza chegou ao bairro aos quatro anos de idade. Ao lado de outras crianças, costumava brincar pelas calçadas e inevitavelmente se deparava com a violência e as drogas, que eram parte do cotidiano.

“A gente era tão criança que não tinha entendimento do perigo”, relembra. Aos cinco anos, ele já estava matriculado no colégio das freiras, como era conhecida a escola do Centro Dom João Costa. 

Cannibal conta que o envolvimento com a cultura e a arte foi imediato. “Todo tipo de manifestação cultural, no teatro, na música, eu estava envolvido”, afirma com empolgação.

O contato com a escola cultivou no adolescente um senso de cidadania, de preocupação com os problemas da comunidade. “O carro da polícia que vinha fazer uma ação aqui não separava quem era procurado e quem era cidadão da comunidade. Isso era horrível! Estar dentro do colégio me abriu a mente para saber onde eu poderia andar, como eu poderia andar”, frisa. 

Como muitas crianças de periferia, Cannibal cultivou o sonho de ser jogador de futebol. Até os 17 anos, jogou no time Juvenil do Sport Club Santa Cruz, mas não foi adiante no esporte.

O punk e a causa social

Ao ouvir músicas punk de artistas de São Paulo, Cannibal se identificou com o estilo e as letras das canções. “Eles falavam dos problemas da periferia de São Paulo que pareciam com os do Alto José do Pinho. Foi isso que bateu [que o tocou]”, explica. Na formação musical, Cannibal assumiu os vocais e o contrabaixo. 

Dessa identificação com o punk, chegou a ser convidado por um colega para tocar no Terceiro Encontro Antinuclear, um show de protesto contra a bomba nuclear de Hiroshima, realizado em Recife. 

Em 1988, surge a banda de punk rock Devotos. Com o trabalho, o garoto que até então empinava pipa pelas ruas do morro, uniu a afinidade com a música e o desejo de melhorar a comunidade. 

Nas letras das canções, além de protestar contra a violência e os problemas estruturais do bairro, eles falavam dos potenciais da comunidade, desde a efervescência cultural, marcada pelo Maracatu Estrela Brilhante, até os afoxés. 

A combinação certeira de música e ativismo da Devotos já dura 36 anos e é repleta de marcos históricos. Em 2012, Cannibal e a Devotos fizeram história ao criar a primeira roda punk só para mulheres no Brasil. 

Do palco, Cannibal via o quanto as rodas mistas eram espaços de violência, hostilidade e machismo. Por isso, decidiu oferecer uma roda só para elas e deu tão certo que, hoje, no Brasil bandas de diversos gêneros musicais oferecem rodas punk só para mulheres. 

Em 2022, a banda subiu ao palco do Rock in Rio como convidada do grupo Black Pantera. Em 2018, as três décadas de carreira foram celebradas com a exposição “Arte é um manifesto – 30 anos de Devotos”, que ocupou o Museu de Arte Moderna Aluísio Magalhães (Mamam), na capital pernambucana. A curadoria foi assinada pelo guitarrista do grupo, Neilton Pereira. 

Cannibal e a banda Devotos.
Cannibal e a banda Devotos. Foto: Fran Silva

A música de protesto de Cannibal e a sua trupe já ecoou por sete países da Europa, Portugal, França, Itália, Suíça, Suécia, Alemanha, Eslovênia e Holanda. Mesmo alçando voos cada vez mais altos, o menino negro abraçado pela comunidade da Zona Norte do Recife, nunca deixou de reforçar que o morro de onde veio tem muito mais do que droga e violência. 

“O pessoal passou a ir ao morro para ver os caboclinhos, manifestação cultural fruto da miscigenação indígena, o maracatu Estrela Brilhante e toda a efervescência cultural”, destaca Cannibal. 

Esse resultado foi a razão pela qual o jovem negro de dreadslocks abaixo do joelho e a Devotos receberam uma homenagem na Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (Alepe). A voz do jovem negro que a violência não calou ecoou pelas paredes da casa legislativa, diante de parlamentares, membros da comunidade e grande público. 

“A arte e a música me transformaram. A arte e a música me fizeram perceber o lugar do outro”, resume. 

Trabalho com crianças do bairro

Hoje, mesmo tomado pelos compromissos da carreira de dimensão internacional, Cannibal apoia os projetos de educação, música e desenvolvimento comunitário do Centro Dom João, a fim de estimular que outras crianças saiam da linha do tiro e entrem na mira da educação e da arte.

O Centro Dom João Costa foi criado em 1970, com o objetivo de oferecer possibilidades de futuro para as crianças e adolescentes do bairro do Alto José do Pinho. Ele foi criado pelas religiosas da Instrução Cristã. A ONG oferece atividades que melhoram o rendimento escolar e ligadas à arte e à cultura. 

No Programa Cultural, eles possuem a Orquestra Social Dom João Costa, um espaço para as crianças e adolescentes da comunidade criarem afinidade com a música e se aperfeiçoarem, caso queiram seguir a carreira musical. 

Na Orquestra Social Dom João Costa, as aulas de violino representam a oportunidade de empoderar jovens talentos, de diversas origens e realidades, por meio da música.
Na Orquestra Social Dom João Costa, as aulas de violino representam a oportunidade de empoderar jovens talentos, de diversas origens e realidades, por meio da música. Foto: Arquivo Dom João Costa

Quem participa deste projeto, tem Cannibal como fonte de inspiração. Inspiração que levou o jovem Wesley Siqueira à Europa. Ele se matriculou na Orquestra e descobriu um novo mundo para além do que as ruas da comunidade ofereciam e, hoje, mora na Romênia. Ele não seguiu a carreira de músico, optou pela área de relações internacionais, mas o contato com a música foi decisivo para ele construir um projeto de vida. 

A união dos esforços da banda Devotos nos palcos e do Centro Dom João Costa, na comunidade, por meio do Projeto de Governança Comunitária, também trouxe melhorias estruturais. 

A Creche do Alto José do Pinho, uma das reivindicações mais antigas dos moradores locais, está em fase de construção. “A gente costuma dizer que é importante colocar um lápis, um instrumento, algo útil nas mãos das crianças e adolescentes, antes que alguém coloque uma arma ou droga”, explica Renato Carneiro, gerente de Projetos do Centro Dom João Costa.

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