Dafé, ao lado de artistas como Luiz Melodia, Tim Maia, Cartola, Wilson Simonal, entre outros, compartilharam o tempo e o espaço de ser um músico negro no Brasil na década de 1970
Texto / Simone Freire | Imagem / Divulgação | Edição / Pedro Borges
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A alcunha de “Príncipe do Soul” não é à toa. José Carlos de Souza, o Carlos Dafé, é compositor, instrumentista, produtor, cantor, entre tantos outros atributos que o fizeram ser um dos maiores músicos do país. Ele esteve ao lado artistas como Luiz Melodia, Tim Maia, Cartola, Wilson Simonal, entre outros, compartilhando o tempo e espaço de ser um músico negro no Brasil na década de 1970.
Para quem não acompanhou os efervescentes anos do auge da música black e soul no país, especificamente os mais jovens, não pôde testemunhar a, digamos, revolução que o chamado movimento black-rio levou para os bares, bailes, rádios e tv brasileiros – e também para o mundo.
“Pegamos todas estas influências e misturamos para fazer a nossa música. Na música soul nós pegamos o samba, a balada, o blues, jazz, bossa nova. […] Nosso movimento foi duradouro e intelectual”, firma Dafé.
Nascido no subúrbio de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, em 25 de outubro de 1947, Dafé vem de uma família incentivadora da musicalidade. Iniciou os estudos na música ainda na infância e se firmou como multi instrumentista.
Egresso do grupo Senzala, semente da banda Black Rio, o cantor também passou pela banda Fuzi 9, do Corpo de Fuzileiros Naval, com a qual fez uma turnê nacional e internacional, além de lançar um LP em 1970. Também passou pela banda Abolição antes de tocar na banda de Tim Maia e de ser contratado pela WEA, gravadora então recém-instalada no Brasil.
Em 1977, o álbum solo, “Pra que vou recordar”, é lançado e ele vê uma transformação em sua carreira. Com o mesmo nome do disco, a principal música do compacto é tema da novela da TV Globo “Dona Xepa”, que era centrada na rotina de uma feirante que lutava para dar uma boa educação aos filhos.
“Teve um lançamento no clube do Olaria [RJ], eu tomei uma vaia quando eu cantei uma ‘new bossa’. Era a bossa, mas nos moldes do soul. A música virou tema da novela ‘Dona Xepa’ e cerca de 15 a 20 dias depois, no Palmeiras [SP], quando eu cantei esta música o público foi ao delírio porque já estava na novela e estavam entendendo qual era o lance”, lembra.
Mas a ascensão da carreira foi acompanhada de muita resistência. Negro, do subúrbio do Rio de Janeiro, Dafé e os tantos companheiros da música que ele sempre faz questão de mencionar em cada história que conta, tiveram que subverter um dos período mais censurados do país: a ditadura militar. “Eles [os militares] tomaram um susto porque viram a movimentação de negros em massa, todo mundo colorido, vestido diferente”, conta Dafé.
Ao mesmo tempo em que o movimento crescia, dominava os bailes e as rádios, os músicos do movimento eram reféns de políticas do Estado. “Era uma loucura. Onde tinha um certo grupo de negros a polícia vinha e mandava encostar na parede, mão pro alto. Ninguém queria saber se a gente era cidadão”, conta.
Ele recorda de como o movimento musical brasileiro estava começando a ser influenciado pela luta dos direitos civis nos EUA a partir de produções audiovisuais e do que recebiam de notícias. Recorda-se também de algumas das referências que tinha na época, caso de Martin Luther King, Malcolm X e os Panteras Negras. “Os militares viram nosso movimento crescendo e mandaram dar um breque, deram um chamado na Warner [gravadora]. Isso chegou na matriz [EUA] e ela mandou parar com o nosso movimento”, conta.
Segundo ele, a gravadora Warner teria tomado um susto com a potencialidade do músico negro no país. Os investimentos até então eram quase que exclusivo para artistas brancos da época. “De repente os negros tomaram conta”, diz. “O pessoal da bossa nova, da zona sul, era elitista. Mas mesmo assim tiveram que nos aturar porque nós adentramos os palcos, os espaços e acabamos mostrando o nosso balanço, misturamos tudo. Assim como foi com a música americana, fizemos alquimia”, relembra o músico.
Mas o reconhecimento e tratamento, até hoje, segundo ele, são diferentes. “Nós nunca recebemos o que nós vendemos. Desde o ano passado estou com um grupo de advogados questionando a Warner na Justiça pra saber porque eu nunca recebi um disco de ouro”, diz.
Dafé faz questão de elogiar todo tipo de músico e não vê diferença no talento por conta da cor. Mas percebe, assim como antes, que o recorte racial ainda dita as oportunidades. “Nós temos shows superlotados, mas chega na hora de tocar no rádio, o que toca é a música do branco”, afirma.
Para ele, antes, a rádio era mais democrática e era possível ouvir música de todos os cantos. Mas, hoje, se dependessem das rádios, diz ele, o soul estaria obsoleto no Brasil. Ele relembra uma das viagens que fez para Amsterdã, na Holanda, onde conheceu uma rádio que só tocava música brasileiras e de artistas que, muito provavelmente, segundo ele, nunca mais ouviremos no Brasil porque o acervo foi destruído.
Cerca de 50 anos depois, mesmo com uma independência maior do rádio por conta da internet, a situação do artista negro pouco mudou. “Se você for ver direitinho, até hoje nós sofremos com o pouco caso da mídia. Os caras têm medo de deixar a negrada, ainda mais com qualidade, por sua mensagem política, existencial, de continuidade. O que eles deixam aparecer são mensagens fúteis”, desabafa.
Artista eclético, Dafé já tocou diversos estilos de música: chorinho, tango, música latina, entre outros. Saudando o que seria uma “nova geração” de músicos black/soul como Bid Bambas & Biritas, Coletivo Instituto, Black Mantra, Aláfia, Expresso Mantiqueira, entre outros, ele afirma que é necessário sempre acompanhar os movimentos que a música faz conforme os anos passam.
O funk é um exemplo. Antes, embora tenham o mesmo nome, o chamado funk era completamente diferente do que conhecemos hoje. “A gente tem que estar sempre de antena ligada. Não ficar falando mal das coisas, dos movimentos. Nem tudo a gente gosta, mas tem que ficar atento”, diz. Para ele, o funk de hoje melhorou muito.
Em turnê celebrando os 50 anos do movimento Black Rio, sobre o que o público ou o mundo precisam saber sobre Carlos Dafé, ele é categórico: “Eu amo, eu amo, eu amo o ser humano! Não importa a cor, a origem, o sexo. Eu sou vovô, não uso droga, eu não bebo, eu não sou contra nada e nem ninguém, mas eu tive que tomar uma posição em relação ao exemplo que a gente passa para a nova geração”, reflete.