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‘Dois Estranhos’: gatilho ou reflexão?

Vencedora do Oscar 2021 de Melhor Curta-Metragem, obra disponível na Netflix explora a violência policial contra pessoas negras a partir da reprodução do fetichismo hollywoodiano em explicitar cenas violentas

Texto: Giovanne Ramos | Imagem: Reprodução/Netflix

Imagem do curta-metragem Dois Estranhos mostra o policial branco e o homem negro de frente um para o outro.

26 de abril de 2021

Contém spoilers Dois Estranhos (tradução de Two Distant Strangers) é um curta-metragem roteirizado pelo comediante Travon Free e dirigido em parceria com Martin Desmond Rose. Lançado mundialmente em 2020, chegou no Brasil pela Netflix este ano e se destacou por falar abertamente sobre a violência policial contra pessoas negras. A produção ganhou o Oscar 2021 na categoria de “Melhor curta-metragem”.

A obra de apenas 32 minutos gira em torno do cartunista Carter (Joey Bada$$), um homem adulto e negro, e sua constante tentativa de chegar em casa e alimentar seu cachorro. O que o impede? Um loop. Para quem não está familiarizado com a palavra, loop é tudo aquilo que acontece numa repetição que não parece ter fim. Sabe aquela cena do Doutor Estranho indo barganhar repetitivamente com Dormammu? É por aí. Mas o loop aqui é mais dramático.

O curta se inicia com Carter acordando após uma noite de amor com o seu rolo amoroso Perrie, uma mulher também negra. Os dois trocam uma conversa, mas a meta do rapaz é uma só: ir para casa. Ao sair do apartamento, o protagonista é abordado por um policial branco após acender um cigarro. E é aí que o show de horrores começa. O policial não só desconfia do que Carter está fumando como também do que ele está carregando em sua mochila e assim o manda se render e encostar na parede.

Perplexo com a suspeita sem fundamento, o rapaz tenta se explicar, mas é em vão. O policial, que não está preocupado com as explicações do cartunista, brutalmente o prende, gerando a primeira cena violenta filmada pelas câmeras de uma mulher desconhecida. Carter é assassinado enforcado ao chão enquanto diz as palavras que se tornaram lema da luta antirracista no ano anterior: “Eu não consigo respirar”, uma referência explicita ao caso de George Floyd, assassinado por um policial branco em maio de 2020.

Quando isso acontece, Carter acorda novamente no mesmo instante em que o curta começa. Apesar do estranhamento, ele tenta agir normalmente, como se tudo fosse um pesadelo. Mas para o seu desgosto – e o meu também, não posso negar – a cena se repete. Ele é abordado pelo mesmo policial e é assassinado de maneira semelhante ao plano sequência anterior e acorda no mesmo ponto. O personagem tenta de diversas maneiras agir de modos diferentes para que não acabe com o mesmo destino, porém é inútil, em todos os cenários ele acaba vítima do policial.

Carter, de Dois Estranhos, deitado no chão enquanto é enforcado por policial.

Ao fazer tantas referências a casos reais, Dois Estranhos peca em reproduzir corpos negros em constantes violências e nenhuma positividade. Foto: Reprodução

A premissa do curta-metragem naturalmente dividiu opiniões. De um lado temos aqueles que louvaram a iniciativa e a denúncia explícita da violência policial contra os negros. Um outro ponto destacado é de que não importa o que negros e negras façam, os seus corpos sempre serão um alvo para os “tiras”. Nesse ponto de vista, o fruto do roteiro de Free instiga uma reflexão moral e global de que o problema não está no comportamento das vítimas como George Floyd e Breonna Taylor ou, trazendo o Brasil à tona, Kauan Alves de Almeida, Alan Diego, Pedro Henrique Gonzaga, Lucas Eduardo Martins, João Alberto Silveira e tantos outros.

A boa intenção é endossada pelos créditos finais do curta, quando uma lista de nomes de afro-americanos assassinados por policiais é apresentada e em alguns deles é destacado o que a pessoa estava fazendo antes de ser abordada e ter um destino trágico. Ao final da dedicatória, uma frase do movimento: “Digam seus nomes, lembrem-se destes nomes”.

Não se pode negar o impacto que Dois Estranhos pode causar em pessoas negras que de certa maneira se veem na mesma situação de Carter. É uma sensação de gatilho enorme, reforçando sempre corpos negros sujeitos a violência e discriminação. Um lembrete que a obra não é uma ficção e sim baseada em fatos reais. E a qual custo? Já é dor suficiente saber que negras e negros como Carter são alvos do racismo estrutural e Hollywood parece constantemente usar dessa dor como enredo.

A idealização da série é interessante, mas talvez seja irresponsável retratar violentamente algo que já ocorre fora do universo fictício. Inovador seria se algum diretor e roteirista desenvolvesse materiais que trabalhassem a figura negra para além do racismo, da violência, da discriminação e do sofrimento. Há muito mais para se mostrar, para adaptar e para retratar do que traumas.

Para quem ainda não está familiarizado com o racismo estrutural – algo que chega a ser inadmissível -, talvez Dois Estranhos traga boas reflexões, abra mentes e sensibilize pessoas apáticas às problemáticas raciais. Mas para quem se enxerga em Carter? Só mais produto da indústria “cutucando” dores e traumas sem nem ao menos nos oferecer um final minimamente positivo soando como um fetichismo de ver pessoas negras em posição de tortura.

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