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“Ele é Black”, de Cassiano Cacique, bota o dedo na ferida no caso Rafael Braga

8 de janeiro de 2018

Em entrevista ao Alma Preta, o músico retrata a história do jovem, única pessoa a ter sido processada após as manifestações de junho de 2013, fala sobre o processo de composição da música e aborda o status quo racista do Estado.

Texto / Amauri Eugênio Jr.
Imagem / Xuxão (Trilha Favela)

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Os versos “A vida crua cheira carne / De segunda qualidade / Na cadeia alimentar / Na cadeia elementar / Na cadeia a lhe matar”, que compõem a música “Ele é Black”, de Cassiano Cacique, 39, remetem de imediato à canção “A Carne”, de Elza Soares. A associação não é apenas uma mera coincidência. Assim como no trabalho da experiente artista, Cacique critica o racismo inerente ao modo como pessoas negras são vistas na sociedade.

No caso da embolada dub “Ele é Black”, primeiro single do músico, o ponto de partida é a história de Rafael Braga, 29, único condenado após a jornada de manifestações de junho de 2013. À época, o ex-catador de latas havia sido preso pelo porte de desinfetante, com a justificativa de que seria um produto explosivo – contudo, a perícia havia mostrado que não era o caso.

Após ser libertado e ter começado a trabalhar no escritório de advocacia que fazia a sua defesa, o jovem foi detido com pouco mais de 9 g de cocaína, 0,6 g de maconha e um rojão, o que foi usado pelos PMs que o abordaram como justificativa para sua prisão – ele alega que os entorpecentes e o artefato foram “plantados” para ele ser detido. Até a publicação desta reportagem, a condenação de Braga está mantida.

“’Ele é Black’ nasce de uma poesia. Em maio [de 2017], eu fui convidado a fazer uma poesia em homenagem a Rafael Braga, para declamar no Sarau Segunda Negra, na Estrada de Taipas. Era uma comemoração ao encerramento da semana dos direitos humanos. No exato momento em que recebi o convite, eu me lembrei da história dele e saiu o verso ‘era só um beque, não era do verde, ele é black’. Essa poesia foi declamada algumas vezes e eu tinha intenção de musicá-la”, explica o cantor, sobre o ponto de partida para a criação da música.

Em setembro, ele foi para Olinda (PE) para criar o som com o músico e produtor Buguinha Dub. No entanto, durante o processo, eles perceberam que a poesia não se encaixava na métrica do beat, o que motivou composição de nova letra, a ser concebida como embolada. “Nesse momento, eu fui para casa com esse desafio e fiquei o fim de semana inteiro imerso nas minhas experiências com a violência policial. Na segunda-feira [seguinte] estava pronta”, relata.

Confira a música de Cassiano Cacique

As cores da discriminação

O caso de Rafael Braga é simbólico pelo fato de ele, negro e pobre, ter sido o único condenado após a série de manifestações em 2013. O artista acredita que a trajetória do jovem é uma representação de como o poder público vê jovens negros e pobres, assim como os oprime justamente por causa da condição social.

“O fato é que você não é um cidadão, mas sempre um suspeito, mesmo que não tenha nem havido algum crime. A condição de pobre periférico, somada à cor da pele negra, tira o sujeito da condição de suspeito e o coloca como acusado”, ressalta Cassiano.

Protesto musical

Logo ao ouvir “Ele é Black”, a sensação é de que se trata de uma canção de protesto. E a pegada é essa, até por haver trechos de certo modo autobiográficos. “Quando escrevi essa canção, pensando sobre o caso de Rafa Braga, me dei conta de que eu, morando 22 anos nas periferias de São Paulo, havia sofrido muito mais violência do Estado do que do crime. Mas eu nunca fui abordado na quebrada sem ter uma arma apontada para a minha cabeça”, descreve o pernambucano, neto do embolador repentista e poeta Manuel Pedro Clemente.

Pode-se dizer que “Ele é Black” é o conjunto das vivências e da visão de mundo de Cassiano Cacique: a sua origem e influência musical, que também tem elementos de MPB, rock ’n’ roll e samba, além da literatura.

“Meu trabalho é todo baseado em literatura e vivências. Eu penso que para você defender uma ideia, é fundamental você se munir de argumentos e os livros são os veículos que mais te enriquecem de argumentos. Quando leio, tenho por costume associar uma história a algum fato real”, completa o músico.

E essa é uma das características mais evidentes de “Ele é Black”, a união de uma característica lamentável da história do Brasil com a crueldade factual de como negros são tratados por aqui, materializada no caso Rafael Braga.

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