“Quero propor um fortalecimento de vínculos, que a gente vem perdendo em um tempo doloroso de colonização que sofremos”, reflete a cantora baiana em entrevista exclusiva para a Agência Alma Preta
Texto: Victor Lacerda I Edição: Lenne Ferreira I Imagens: Divulgação/Caio Lírio
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Intensidade e braços abertos aos projetos que encontra no seu caminho. É assim que a cantora Larissa Luz vem trançando sua trajetória, que iniciou no mundo da música profissional com a banda Araketu, quando ainda tinha 19 anos. Hoje, cantora compositora, produtora musical, curadora e atriz, não necessariamente nessa ordem, ela segue encarando novos desafios e produzindo uma arte comprometida com seu tempo.
Larissa começou a cursar canto e teclado aos 10 anos de idade. Natural da Salvador (BA), de lá pra cá conquistou um público cativo. Sua trajetória é recheada de encontros que formaram uma identidade expressadas na potência de sua voz, que já entoou o musical “Elza” (2018), em homenagem à cantora Elza Soares, e discos de estúdio, como o Território Conquistado (2016) e o mais recente trabalho, “Trovão” (2019). Em seus projetos, discursos que reafirmam a força da mulher negra, sua história, a busca e referência à ancestralidade, com inserção de elementos como o afrofuturismo, que diferem Larissa do que está convencionado como música popular vinda da Bahia.
Em entrevista exclusiva, Larissa conta que teve um incentivo em casa à introdução à arte, ainda na infância, com a mãe, que há anos trabalha como educadora. Desde muito nova, recebia livros, jogos e elementos que a instigavam a adentrar no universo da literatura, sua porta de entrada para trabalhar sua imaginação.
O reconhecimento de um universo vasto a ser explorado, como o das múltiplas formas de fazer arte, deu-se na sua entrada em um colégio de Salvador, onde, na grade curricular, Larissa teve como disciplinas artes e teatro. “Lá, eu pude descobrir que poderia cantar, que minha voz poderia ser boa ao ser ouvida. Depois disso, eu mesma fui experimentando, e descobrindo, passeando pelo universo da arte, de uma forma mais livre. Na curiosidade mesmo. Fui indo, indo, indo e não voltei mais”, relembra a cantora.
Foi sobre esse caminho sem volta que a Agência Alma Preta conversou com a artista sobre carreira, processos de criação, inspiração artística, percepções políticas e expectativas sobre 2021 e seus novos projetos. Confira:
Alma Preta: Olhando para sua trajetória, como você enxerga as diferentes “Larissas” que o público já pôde acompanhar? Como você avalia seu encontro com as diversas formas de se envolver com tantas vertentes da arte?
Larissa Luz: Eu sempre gostei do encontro das linguagens artísticas. Comecei nesse mundo da arte no teatro, adorava interpretar e todas as possibilidades de criação daquele universo. Ele me possibilitou a querer me envolver com tudo, como a criação do roteiro, do texto, da trilha. Eu sempre gostei da multilinguagem. Sempre me senti motivada e com interesse em explorar as diversas formas de linguagens artísticas. Isso estava comigo desde o princípio. Quando minha mãe perguntava o que eu queria ser quando crescer, respondia que seria modelo, atriz, cantora, escritora, dançarina. Minha mãe dizia “Nossa! Tudo isso?”. Então, sempre foi um desejo conciliar todas as expressões artísticas e fazer de todas elas aliadas para adentrar em um mundo novo da arte.
AP: Sobre seu processo de criação, existe um ritual ou um intervalo de tempo que você precise para conceber um projeto e executá-lo?
Larissa Luz: Não tem regra, não tem logística. Eu gosto de uma frase que diz “quando a inspiração chegar, tem que encontrar a gente trabalhando”. Então, eu crio um contexto de ferramentas. Busquei aprender a produzir. Instalo programa, investigo, adiciono plug-in, enfim, gosto de investir nessas coisas. Gosto de ter ferramentas para poder produzir, mas não tem regra. Às vezes eu componho com algo que aconteceu com alguém e que eu complemento com algo que aconteceu comigo. Às vezes parte do ritmo, às vezes parte do texto. Às vezes vem de uma imagem e aí eu paro tudo para poder entender. No mais, me sinto o tempo inteiro à serviço da arte. A qualquer momento a ideia pode vir, “dores do parto”, e aí vou lá conceber. Não tem regra.
AP: Suas duas últimas criações, em estúdio, foram os álbuns ‘Território Conquistado’ (2016) e o ‘Trovão’ (2019). Nesses dois diferentes trabalhos, como você se classifica dentro dessas eras? Existia um interesse em defender um discurso em cada fase?
Larissa Luz: Tenho investido em pesquisar e adentrar a cultura negra e suas nuances, suas questões e narrativas há um tempo. O Território Conquista foi um disco onde me libertei e pude falar explicitamente sobre questões sociais, partindo da minha perspectiva de uma mulher negra e baiana. Foi nessa época que eu vi a possibilidade de usar a minha arte como uma ferramenta transformadora. Usar isso como ferramenta política também me fez me sentir forte ao descrever minhas experiências em forma de poesia, em forma de canção. Além de trazer discursos de outras mulheres, que dividem das suas vivências comigo, dividem as histórias delas, o que faz com que a gente se fortaleça de forma mútua. Os dois projetos representam um universo que eu tenho curtido adentrar, apesar de não me sentir presa ao discurso voltado aos questionamentos sociais. É um mundo que não posso perder de vista. Como diz Nina Simone: “Todo artista tem que refletir seu tempo”. Nesses dois discos eu estou passeando pelo universo negro, de uma forma complexa, verdadeira e profunda.
AP: Sobre a construção do seu álbum de estúdio mais recente, é perceptível a experimentação no processo de criação como um todo. Um dos exemplos é a parceria com o produtor Rafa Dias [responsável por hits como “Elas Gostam (Popa da Bunda)”, do Psirico, e “Me Gusta”, da cantora Anitta com a rapper internacional Cardi B], associado a um som que mescla elementos eletrônicos com ritmos populares baianos, como o ‘pagodão’. Como foi essa parceria para um som que foge do que se espera da cena musical da Bahia? Você enxerga uma “nova cena” sendo associada ao estado?
Larissa Luz: Acredito que Rafa está desenvolvendo um trabalho dentro da produção musical contemporânea baiana de uma forma muito forte e muito bem feita. Ele é um pesquisador que já vem estudando essa interação de ritmos regionais e periféricos com timbres eletrônicos há um tempo, desde outros trabalhos antes do ÀTTØØXXÁ. Acompanhei a evolução dele nesse trabalho e eu quis estar perto dele nesse processo de alguma maneira e trocar com ele para experimentar, sabe? Para mim, a nova cena da Bahia está aquecida, com o surgimento de mais, mais e mais artistas incríveis e não vai parar de surgir, pois nós temos mesmo artistas maravilhosos.
AP: Como curadora do Afropunk, um dos eventos de maior visibilidade para a cultura popular negra mundial, na sua última edição no Brasil, em 2020, o que você vem consumindo de música para entender o que está vindo de novo nacionalmente?
Larissa Luz: Na Bahia, tem muita gente produzindo trabalhos diferentes e incríveis. Tenho escutado as produções Vírus, Yan Cloud, meus parceiros Russo Passapusso e os meninos do Ministério Público. Também escuto minha amiga querida Nara Couto e Nininha Problemática. E mais trabalhos que, ao meu ver, precisam ser mais vistos e valorizados. Trabalhos dignos de muito respeito.
AP: Você acredita que essa pluralidade e força da música baiana em sua nova fase, cumprindo grades de programação de festivais internacionais, por exemplo, retira os olhares do mercado musical do eixo Rio-São Paulo e traz de volta à Bahia?
Larissa Luz: Quanto mais a gente produz, naturalmente essa movimentação acontece, sim. Acredito que outras formas de distribuição de música, com a distribuição digital, com as empresas agregadoras, foi cada vez mais se tornando real essa descentralização cultural. Venho acompanhando e vendo a gente galgando vários espaços sem precisar estar em disputa. A gente simplesmente faz. O famoso: “faz o teu, bença!” (risos). E ainda acho que essa movimentação vai além da questão territorial. De uma maneira geral, já saímos mais daquele formato antigo, quando as gravadoras colocavam em destaque um único artista a ser mais trabalhado. Temos um catálogo vasto de artistas, que estão podendo trilhar suas carreiras independente de grandes empresários por trás, por exemplo. Nesse meio, a Bahia achou sua forma de ser vista, contemplada e colocar suas produções para frente.
AP: A pandemia pela COVID-19 acometeu milhões de pessoas no último ano e, para além de problemas na saúde pública, vários setores empregatícios também foram defasados nesse contexto, entre eles o setor cultural. Como você analisa esse entrave para a classe? Acredita que falta um maior incentivo político que dê suporte aos artistas para que as produções continuem firmes no país?
Larissa Luz: Acho que nós, artistas, produtores e toda classe, estamos fazendo o que pudemos. Estamos produzindo, pensando em outros projetos. No meio disso tudo, usamos mais as lives nas redes sociais com todos os cuidados de sanitização e fomos descobrindo novos meios para escoar nossas produções. O audiovisual surgiu como um grande meio para isso. Não podemos esquecer que uma boa fatia da classe foi imensamente prejudicada e, creio que, de uma forma irreversível, como a parte técnica, que dependem da realização de eventos presenciais, então tem muitos profissionais em dificuldades. Mesmo com esse cenário, estamos buscando driblar a situação. Vejo uma movimentação de coletividade, de se questionar como ajudar uns aos outros. Precisamos continuar pensando mês a mês, botando a cabeça para funcionar mesmo. É hora de refletir como não sucumbir, não deixar tudo ruir, não se abater.
AP: Em dezembro, você conseguiu lançar a música “Não tenha medo de mim”, com videoclipe lançado em parceria com o ator Fabrício Boliveira, que mesmo em um contexto adverso que estamos passando, fala sobre o amor, sobre afetividade. Mais uma vez a Larissa buscando novos caminhos a serem discutidos. Para além desse novo trabalho, o que as pessoas que te acompanham podem esperar em 2021?
Larissa Luz: Em 2021, na sequência de “Não tenha medo de mim”, eu quero lançar um EP com essa mesma temática do afroafeto, do amor preto, de como a gente vai desenrolar as relações a partir de agora e de como é importante a gente pensar sobre isso. Quero propor um fortalecimento de vínculos que a gente veio perdendo em um tempo doloroso de colonização que sofremos. Ainda quero escrever um livro infantil, o qual fui convidada a produzir. Estou cheia de ideias. Quero atravessar essa fase construindo coisas boas.
Bate-bola com Larissa Luz:
AP: Uma canção para ouvir em dias mais tristes?
Larissa: Sound & Color, do Alabama Shakes. Uma canção profunda, que busco para entender a tristeza.
AP: Uma canção para um dia massa?
Larissa Garota de Salvador, de Hiran. Para curtir um sol, bem plena.
AP: Ancestralidade é?
Larissa: Raíz.
AP: E o afrofuturismo?
Larissa: É o nosso presente.
AP: Os orixás em sua vida são?
Larissa: Guias, protetores, condutores.
AP: Como diz a sua canção ‘Aceita’, que abre o ‘Trovão’ (2019), eu sou de Iansã com Ogum. Ideias do mal eu…?
Larissa: Derrubo. Corto com a minha espada! Combato com a verdade, com justiça, com intensidade, com axé, com ancestralidade. Ideias do mal eu bloqueio com amor!