A hierarquia em um terreiro de candomblé vai além da idade de iniciação de cada um. Os membros, que se consideram uma família, respeitam também a figura matriarcal das Iyabás, ou seja, orixás do gênero feminino, e os cargos dentro da comunidade começados com o prefixo iyá, que quer dizer mãe, em iorubá.
Oxum, Iemanjá, Oyá, Nanã são as Iyabás mais conhecidas, mas a feminilidade e força maternal também é encontrada em outras orixás, como Obá, Yewá e Otin. Os itans do candomblé, ou lendas, são o reconhecimento ancestral trazido na oralidade para o entendimento e cuidado com a cultura sagrada, em reverência ao matriarcado nas crenças religiosas, e vida circular dentro das simbologias afro brasileiras, explica a iyalorixá Maria Cristina Martins.
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A sacerdotisa, que também é coordenadora estadual da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro), salienta que é natural para os adeptos ao candomblé a compreensão do universo a partir do líquido amniótico, e da circularidade do útero fértil, permitido por Oxum, orixá guardiã do nascimento de toda espécie criada por Olodumarè.
“Oxum é a Iyabá que traz dentro de suas atribuições o amor, a articulação e o encantamento no reflexo de seu espelho, chamado de abebê”, conta a Iyalorixá.
Para a Iyamayé Fabiana Santana, adepta e iniciada na religião há 16 anos, a simbologia do útero de Oxum pode ser facilmente explicada com a representação do ovo, que é “a maior célula viva”. Segundo Fabiana, por Oxum ser a força da natureza responsável por toda água doce que há, o líquido amniótico, onde os bebês ficam durante a gestação, também pertence à ela.
“Oxum toma conta das crianças desde a gestação até elas aprenderem a falar. Para a cultura iorubá, sem o consentimento de Oxum não há gravidez”, comenta a Iyamayé.
Cargos e maternidade
Os postos ou cargos de dentro do candomblé são mais do que um mero dever com a comunidade. Seguindo o exemplo das Iyabás, as mulheres que possuem obrigações em um terreiro assumem, mesmo que momentaneamente, a figura materna na vida dos integrantes mais novos da casa.
Iyalorixá, por exemplo, significa zeladora do orixá. Comumente chamada de mãe de santo, o cargo é considerado o mais alto posto dentro de um terreiro. Já uma Iyarobá é responsável por estar presente em todos os atos e cerimônias, sabendo rezas, preceitos e cuidados com o orixá do Babalorixá ou Iyalorixá.
A Iyamayé de uma casa também é uma figura de muita importância. Seu cargo está diretamente relacionado com os segredos da iniciação de uma pessoa. “É essencial para todos que vão se iniciar”, destaca Fabiana.
Todos esses cargos, e outros, como Iyagibonan (mãe criadeira, que cuida do yawô durante a iniciação) são essenciais para a comunidade crescer e se entender como família. Os ensinamentos são passados sempre do mais velho para o mais novo.
A Iyarobá Ariane de Oliveira explica que ter atribuições maternais na casa de candomblé requer muita responsabilidade. Ela relata que esse sentimento ficou mais forte após o nascimento de suas duas filhas, também iniciadas para o orixá.
“Ser mãe de pessoas que nunca conheci, sem saber sua história e aos poucos ir conhecendo de fato é muito desafiador, ao mesmo tempo que é gratificante. Em contrapartida, ser mãe por ter gerado dentro de mim não é a melhor sensação. Ser reconhecida pelo orixá como mãe e aprender com eles o que essa responsabilidade significa faz o meu amor, respeito e cuidado só crescer a cada dia”, detalha Ariane.
Por conta do entendimento africano milenar da circularidade e de que o feminino é a base para toda construção de ensinamento e aprendizagem, entende-se que a força materna é essencial para não deixar que isto se perca, avalia a Iyalorixá Maria Cristina. A líder religiosa explica que, caso isso aconteça, a grande roda do Baobá, que é o marco da hegemonia da criação, será enfraquecida.
“A entrega e dedicação destas pessoas com seus cargos na liturgia sacra dão a essência e conteúdo para a renovação e vida futura”, pontua Maria Cistina.
A ausência materna suprida no terreiro e os ensinamentos de orixá
“As Iyabás sempre foram mães gentis, de um cuidado ímpar. Senhoras que sempre estão dispostas a enfrentar qualquer coisa para proteger seus filhos. De fato, os ensinamentos dos orixás estão sempre relacionados com amor, respeito e cuidado com o outro”, conta a Iyarobá Ariane.
Para Sulamita Oliveira, frequentante do candomblé ainda não iniciada (abian), a ausência materna é suprida com os cuidados que as Iyabás demonstram e ensinam no cotidiano dos terreiros. De relação difícil com a mãe, Sulamita faz parte da porcentagem de 10% de filhos no Brasil que não possuem um bom relacionamento com as mães ou sentem que elas têm preferência entre os filhos, de acordo com dados da Coordenação de População e Indicadores Sociais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
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“A palavra que mais define o candomblé é o acolhimento. Orixá não faz distinção entre os filhos, eles nos amam como somos, independentemente de qualquer coisa. É assim que eu compenso a carência materna, pois sei que eles são por mim. Minha carência é suprida pelo menor gesto, um abraço. É uma forma de ver como o orixá é mágico”, desabafa a abian.
Para a Iyamayé Fabiana, as Iyabás ensinam principalmente a força feminina em ser mãe, paciente, e compreensiva, mesmo quando precisam educar seus filhos sem a presença paterna. “Uma mulher, mesmo sozinha, é capaz sim de criar, educar e ver seus filhos terem um futuro promissor”, pondera.
Sulamita compreende que o relacionamento com as ditas mães no terreiro de candomblé também traz algo que falta dentro de casa: o diálogo. A abian se sente muito mais confortável em conversar com os membros mais velhos da casa de candomblé do que com os familiares consanguíneos.
“Oxum me ensinou que nada é mais lindo que o amor de mãe e a vontade de ser mãe. As conversas no terreiro são mais fáceis por acontecerem de forma acolhedora e sem julgamentos por parte do Babá ou da Iyá”, avalia.
Iyá Maria Cristina complementa que as mulheres e mães dentro de um terreiro de candomblé sempre serão consideradas guardiãs dos adeptos da religião, portanto, é essencial aprender continuamente e alinhar as ideologias com a comunidade.
“Somos as cuidadoras da continuidade de crenças, aprendizados e construções dentro da vida cotidiana que cada um de nós vivemos. Cada vez é mais necessário estarmos entre nossos iguais para acolher o que realmente é de experiência para cada pessoa humana criada. A figura de uma líder religiosa é muitas vezes o estopim do viver e ou se perder na diversidade de sensações e emoções ”, conclui a sacerdotisa.