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Mateus Aleluia e Lia de Itamaracá exaltaram a ancestralidade negra no Festival Coquetel Molotov

A Alma Preta Jornalismo acompanhou a apresentação presencial de dois dos mais expressivos artistas da música brasileira no Teatro Guararapes, em Olinda-PE; Ambos com mais de sete décadas de vida e sobreviventes de uma pandemia, Mateus e Lia foram reverenciados pelos mais novos

Texto: Lenne Ferreira | Imagens: Fran Silva

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14 de novembro de 2021

Chegou munido de Ogum, o senhor dos caminhos. Com a proteção do orixá guerreiro, conhecido pela sua coragem e força, e também de Iemanja, Mateus Aleluia iniciou sua apresentação na primeira noite do Festival No Ar Coquetel Molotov 2022. Ao seu lado, o pianista e maestro Ubiratan Marques, que se uniu às cordas do violão de um dos maiores griôs,  e músicos vivos do país, além de percussionista, compositor e pesquisador. Em pouco mais de 40 minutos, o artista cantou músicas que marcam a sua trajetória desde o período em que integrou o lendário trio Tincoãs (1970). Tradicionalmente vestido de branco, Mateus evocou os orixás e à plateia. “Me ajudem a cantar. Eu preciso de ajuda. Nós precisamos”.  

Em uma versão de show minimalista, aos 78 anos, o músico sabe que poderia ter sido uma das 611 mil de vítimas mortas pela Covid-19 no Brasil, a maioria com sua mesma cor de pele. Após um intervalo de mais de um ano e meio sem aparições públicas, o artista parecia que também comemorava à vida e ao reencontro com o público, que respeitou o uso de máscaras e apresentou carteira comprovando as duas vacinas na entrada do show. O formato no teatro não é uma novidade para o Festival No Ar Coquetel Molotov. Em sua 18ª edição, o evento também já ocorreu no Teatro da UFPE e é o primeiro de grande porte da cena alternativa que inaugura a fase de maior relaxamento das medidas de combate ao coronavírus em Pernambuco. Para garantir maior contato ao ar livre, a praça de alimentação foi montada em área externa e, atenta, a equipe de produção “puxava a orelha” do públicos em eventuais “vacilos” da clássica máscara no queixo.

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MATEUS CAPA

Com capacidade para 2400 pessoas sentadas, o Teatro Guararapes, em Olinda, tinha pelo menos 1500 de suas cadeiras ocupadas , segundo estimativas da organização, quando Mateus começou a cantar. O burburinho da plateia cedeu lugar a um silêncio respeitoso assim que o baiano iniciou a apresentação do repertório composto por canções como “Ongum pa”, primeira do acervo musical, que também incluiu “Despreconceituosamente”, “Lamento das Águas”, do disco Cinco Sentidos (2017). Músicas que revelam as referências presentes em seu trabalho como o samba de roda do recôncavo baiano e os cantos sagrados dos terreiros de Candomblé com os quais teve contato enquanto praticante dos ritos de matriz africana.   

“Invoquemos a presença da majestade superior. É um momento difícil que o mundo vive. Mobilizemo-nos”, disse o cantor. Em seus shows, Mateus, que prefere conversar por meio do violão e do seu canto, também costura uma canção ou outra provocando o público a se conectar com a natureza imaterial e refletir sobre o tempo presente. Impressionante ver como um palco com apenas três elementos sonoros – voz, piano e violão-, conseguia produzir uma experiência que acionou tantas sensações na plateia. Dava para quase tocar a voz de Mateus Aleluia. Adicione-se aqui à comoção pelo show ao sentimento de recomeço para todas, todos e todes ali presentes. Após mais de um ano de shows cancelados e encontros públicos suspensos, muita gente cantava, chorava, sentia e, no fundo, agradecia por estar vivas (os,es).

Mateus, reluzente, sua voz grave e retumbante, cobriu a plateia com a potente poética oral de um griô com um acúmulo de mais de 50 anos de carreira, dos quais quase 20 foram vividos em Angola. Nesse período, teve contato direto e se aprofundou na cultura africana e os dialetos dos povos distintos, algo que incrementa a obra musical do cantor que explora muito bem esse conhecimento nas letras. A religiosidade é outro ponto central no trabalho de Mateus Aleluia, que representa um dos maiores exemplares da influência africana na musicalidade brasileira.

MATEUS INTERNA.        

Com “Cordeiro de Nanã”, uma de suas canções mais aclamadas pelo grande público, o músico, que é natural de Cachoeira, recôncavo baiano, evoca em seus versos a entidade que, no candomblé, é responsável por acolher os mortos. A narrativa se aproxima de elementos que compõe a identidade de sua cidade natal, onde acontece a centenária Festa da Boa Morte, celebração promovida pela primeira irmandade feminina do país, com mais de 200 anos de formação. É nesse chão, que preserva traços da contribuição de homens e mulheres escravizados (as) que Mateus Aleluia tem suas raízes “fincadas”, embora saiba que um oceano inteiro não o separa da terra mãe.

Antes de se despedir, ele brincou com os espectadores: “Peçam o bis enquanto eu estou aqui para não ter que retornar”, falou, justificando o pedido com a dificuldade de locomoção, o que tem gerado a necessidade de uso de muletas. Antes de encerrar, revisitou a discografia da lendária Tincoã com “Deixa a gira girar”, canção que exalta o panteão de divindades do Candomblé e foi acompanhado pelas palmas e vozes da plateia. Embora muitos quisessem ouvir mais da rica obra musical do artista, especialmente o último disco, Olurum, o sentimento era de gratidão pelo tempo em que ele permaneceu no palco. Com ajuda da produção, Mateus se aprumou sobre as muletas, posou ao lado do impecável pianista Ubiratan, e deixou o palco deslizando lentamente com a serenidade e leveza de Oxalá. Epa babá!

“Para chegar aqui atravessei o mar de fogo”

LIA PRINCIPAL

No Camarim, Lia estava ansiosa. Mas o sorriso do canto a outro entrega a felicidade por voltar aos palcos. Última atração da primeira noite do Festival no Ar Coquetel Molotov, ela seguiu o ritual de produção que inclui algumas horas para a montagem do figurino, uma marca de suas apresentações ao vivo. Dois vestidos longos estavam separados na arara. Ela fez questão de explicar a ordem do show e o momento para o uso de cada peça. As unhas, como sempre, carregam as cores que a cantora pincela como em aquarela. 

Enquanto esperava seu momento na grade da programação da noite, Lia brincava e conversava com os músicos que já afiavam os instrumentos. Nomes como Danda do Sax, Ganga Barreto e o marido Tonho, que já a acompanham há alguns anos. A sereia preciosa de Itamaracá, patrimônio vivo de Pernambuco, reconheceu a importância de figurar na grade de um festival consagrado no Estado, principalmente em um momento em que artistas de todo o país ainda sentem os efeitos da pandemia. “Quem ainda tá conseguindo cantar tá bom, mas e quem tá passando fome?”, provocou ela, lembrando que a cultura popular foi a mais atingida dentre as classes artísticas.

As Irmãs Baracho, Dulce e Severina, também não escondiam a satisfação pelo retorno. “Foi muito tempo parada, mas graças a Deus estamos aqui”, comentaram.   As três foram maquiadas por Félix Oliveira, parceiro de longas datas. Lia, que anda sempre com sua maletinha a tiracolo, precisa de ajuda para chegar deslumbrante em cima do palco. Os penduricalhos, no entanto, é com ela, que gosta de experimentar e combinar anéis, colares e brincos do seu arsenal de bijuterias cuidadosamente guardadas.

LIA SE ARRUMANDO

Além do show no Coquetel, Lia tinha outro motivo para comemorar: a inauguração, neste domingo (14), de asua embaixada, que passa a funcionar no Forte Orange de Itamaracá. O espaço conta com uma exposição sobrea história e obra da cirandeira que leva sua cidade no nome. Para ajudar na manutenção da embaixada, a cantora lançou uma campanha para quem tem interesse em contribuir com doações. Um show foi marcado para abertura oficial do local onde Lia vai estar semanalmente para receber visitantes de dentro ou fora de Pernambuco.

O relógio contava 21h30 quando a cantora apareceu para o público no palco do Teatro Guararapes. Com seu primeiro figurino, assinado pelo estilista Júlio César e acompanhada pela potência vocal das Irmãs Baracho, ela iniciou a apresentação com ciranda cantando a música “Cirandando pela praia”. Mas o repertório demonstrou a diversidade de referências da cantora, que também cantou MPB e coco, além de interpretar sucessos de Caetano Veloso (Marinheiro só), Chico César (Papangu), Capiba, Dorival Caymmi (Suíte dos pesadores) e Baracho.

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No segundo ato da apresentação, que tem coordenação artística de Beto Hees, Lia deixou o palco para retornar com seu icônico azul Iemanja em um figurino assinado por Gilka Brechó. Antes, Lucas dos Prazeres dirigiu uma louvação à jurema sagrada e às orixás Iemanjá, Oxum, Iansã e Nanã, que contou ainda com as participações do percussionista Viola Luz e os vocais das cantoras Uana e Luciene Loyce. Elas se juntaram a Lia na execução de sua nova música, “Mar de fogo”, um ponto para Exu. O projejto, realizado em parceria com André Moraes, tem vídeo clipe oficial lançado nesta segunda-feira (15), no Dia Nacional da Umbanda.  

Grata e realizada por estar viva, Lia agradeceu a Exu pela guiança: “Para chegar aqui atravessei o mar de fogo”. Ela não se queimou. Lia de Itamaracá está viva. Laroyê!

 

 

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