Medida Provisória, filme em que Lázaro Ramos estreia como diretor, carrega em si o seguinte compromisso com a população negra: a denúncia do racismo estrutural no Brasil. Elaborado de maneira minuciosa pela também ator, que garimpou os mínimos detalhes da obra – desde elenco até a trilha sonora – o filme foi roteirizado a partir da peça teatral “Namíbia, não”, do escritor e ator baiano Aldri Anunciação, que inclusive atua no longa.
A história se desenrola a partir de uma Medida Provisória, estabelecida pelo governo brasileiro, que prevê o envio de negras e negros para o continente africano como uma forma de “reparação”, tornando o Brasil um país totalmente branco. André e Antônio, personagens interpretados por Seu Jorge e Alfred Enoch, ficam confinados em casa para não serem expatriados. A partir daí, a trama distópica apresenta dramas que assustam por parecerem tão próximos da realidade.
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“O exercício era pensar sobre coisas que a gente não gostaria que acontecesse no futuro e assuntos que a gente precisaria estar alerta para prevenir, para melhorar, para o futuro não ser esse futuro distópico. Infelizmente, várias das coisas já aconteceram, não é? Se por um lado isso mostra como a arte é poderosa, em farejar essas coisas, por outro mostra que a gente ainda tem muito a falar sobre a luta antirracista e muito a caminhar sobre a compreensão da nossa identidade”, comenta o diretor de Medida Provisória.
Segundo Lázaro, a obra necessitou de cerca de sete anos para ser adaptada dos palcos do teatro para cinema. Relações humanas, confinamento, colorismo e resistência negra fazem parte do enredo pensado pelo diretor, que afirma se emocionar em diversas cenas do longa.
A trilha, embalada por canções da saudosa Elza Soares entre outros artistas negros, traz os tons de euforia, temor, drama e potência que permeiam o filme e faz com que o espectador se prenda à tela e se identifique com os personagens.
“Qual voz representa mais a nossa história? Qual voz representa mais a nossa luta e a nossa potência? Qual voz representa mais a nossa capacidade de se reinventar? Elza é isso. Eu fico tentando entender o nosso tempo através desse alerta que a arte nos trouxe e espero que o filme provoque isso nas pessoas também.”
“Primeiro, espero que as pessoas se entretenham, que é um filme para se entreter. Mas que elas, também, se fortaleçam nesse lugar de saber reconhecer sua potência e encontrar alternativas para a gente ter um mundo e um futuro melhor”, completa Lázaro.
Ator Lázaro Ramos compartilha sua primeira experiência como diretor de um filme | Imagem: Yago Rodrigues
Medida Provisória traz ainda uma crítica afiada e bem humorada sobre a situação dos afro-brasileiros. A ideia, segundo Lázaro Ramos, é provocar o imaginário do público a questionar assuntos desde a opressão do governo até o afrofuturismo, e falar sobre violência urbana, mas sem retratar armas de fogo, por exemplo.
“Eu quis fazer um filme que, mesmo falando disso, trouxesse outros lados da nossa existência. Foi um filme que, por exemplo, muitos dos consultores falaram que ele precisaria se passar em uma favela e eu não quis produzir essa imagem que a gente já viu muito, a da perseguição dos corpos pretos nesse espaço. No filme, tem um outro tipo de perseguição”, diz.
O poder dos cínicos
Com um chamado forte à resistência, o filme mostra um governo totalitário e descolado das reais necessidades de seu povo e, a partir disso, apresenta um grupo organizado que se articula contra os desmandos deste Estado.
A atriz Adriana Esteves interpreta a personagem Isabel, que acredita que a reparação histórica que o Brasil deve à população negra pode ser suprida com o envio do povo preto de volta à Africa. Para a atriz, no entanto, é assustador perceber o quanto a realidade mostrada do longa escancara o racismo estrutural do Brasil nos dias de hoje.
“Parece que, de uns anos pra cá, deflagrou-se o surgimento de todos os cínicos. Tem os ignorantes, os alienados, mas tem o poder dos cínicos. É necessário o pensamento e a reflexão sobre o tema e admitir que o nosso país é e sempre foi racista”, pondera Adriana.
Ela ainda afirma que a reflexão racial trazida por Medida Provisória mostra que o racismo é uma questão que envolve toda a sociedade brasileira, não somente o povo preto.
“É refletir sobre um mundo melhor e entender que, realmente, é um problema de todos nós. Racismo é crime e esse é um dos crimes que tem que ser extinto. Não é diminuído e, sim, extinto”, acredita.
Seu Jorge e Alfred Enoch interpretam André e Antônio na trama | Imagem: Yago Rodrigues
O que é ser negro?
Em Medida Provisória, há uma cena emblemática em que o personagem interpretado por Seu Jorge se desestabiliza emocionalmente após vários dias de reclusão e se pinta de branco, como uma forma de “disfarçar” sua negritude e não ser reconhecido por aqueles que capturavam pessoas negras. O ator e cantor comentou a respeito.
“Aquele é o momento que ele [André] cai, emocionalmente, psicologicamente, por estar com fome, com sede, sem luz em casa, ilhado, preocupado, sem saber onde estão as pessoas que ele ama. Ficou marcado, para sempre, esse gesto desse personagem que, em um momento muito duro, reflete: ‘e se a gente se pintar de branco, será que a gente consegue comer, beber’? Então, foi duro de fazer, mas foi um presente”, comenta.
A trama também fala muito sobre colorismo a partir do momento em que as pessoas são lidas de formas diversas de acordo com seus tons de pele. Em um dado momento, por exemplo, o personagem André afirma: “se parece preto, é preto”. Para Seu Jorge, esse assunto é ainda muito delicado para a população brasileira, mas que precisa ser debatido com urgência.
“Existe uma certa porcentagem da população que ainda tem dúvida em se reconhecer preto ou pardo. Mas, na medida que a gente se encontra como maioria e vai se expandindo, essas pessoas também vão começar a se reconhecer nesse lugar, até para gente angariar forças”, avalia o ator.
Vivência negra fora da ficção
Alfred Enoch, que interpreta Antônio em Medida Provisória, salienta que na Inglaterra – local em que o ator mora – a situação da população negra e o racismo estrutural são lidos de forma diferente do que é no Brasil. Ele relembra que a maioria da população negra chegou às terras inglesas na década de 1950, em um momento pós-guerra.
“Essas pessoas foram chamadas pelo império para reconstruir o país depois da Segunda Guerra Mundial. Então, parece mais fácil, acredito, negar o racismo estrutural naquele país por não ser, da mesma forma, uma sociedade escravagista”, avalia Enoch.
Da esquerda para a direita: Nadine Nascimento, editora da Alma Preta Jornalismo, Taís Araújo, que faz a pesonagem Capitu, e Adriana Esteves, que faz Isabel | Imagem: Yago Rodrigues
Taís Araújo, por sua vez, ressalta que mesmo que em alguns momentos não queira falar sobre as questões relacionadas à negritude, essa é sua pauta. “É minha pauta enquanto artista, enquanto mãe, enquanto mulher preta, então vai ser muito difícil eu não tocar nessa pauta. Essa é a minha maneira de resistir e de trabalhar para um país que tem esse câncer”.
A atriz, que representa Capitu na trama, relembra que quando soube que seria mãe de um menino, teve medo das violências que poderiam atingir seu filho. “Ser mãe de uma criança negra potencializa a angústia, porque esse país aqui é racista e cruel mesmo. Ele [o país] não tem a menor humanidade nesse sentido. Morre muita gente e as pessoas não se compadecem. Tem os grupos de militância, o movimento negro e alguns aliados, que se compadecem, mas no dia seguinte é ‘vida nova’”, finaliza a atriz.
O filme Medida Provisória estreia na próxima quinta-feira, 14 de abril, nos cinemas.
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