A historiografia contada através de estátuas e monumentos em espaço públicos nas cidades brasileiras é uma narrativa política que está em constante disputa ideológica. O fogo na estátua de 10 metros do bandeirante Manuel de Borba Gato reacendeu o debate sobre a pertinência de monumentos que homenageiam pessoas ligadas à escravidão, à ditadura e a outros períodos sensíveis no passado do Brasil.
Um dos organizadores do protesto que aconteceu na cidade de São Paulo, Paulo Lima, 33 anos, conhecido como Paulo Galo, teve a prisão temporária por cinco dias decretada pela justiça de São Paulo, que depois foi renovada, e o pedido de habeas corpus negado.
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“Existe um aparato institucional que protege como patrimônio, com financiamento para conservação e restauro essas estátuas de escravocratas, que foram responsáveis por dizimar os povos originários. Elas representam escolhas que contam apenas uma face da história. Discutir a permanência ou não dessas estátuas é parte da disputa da narrativa política, que por um outro lado é a luta contra o apagamento histórico da memória de grande parte da população, um apagamento que acontece até hoje”, afirma Danielle Santana, arquiteta urbanista, sócia da Tapera Arquitetura e Patrimônio Cultural e doutoranda em urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Desde 2015, o Angana, núcleo de pesquisa e educação patrimonial em territórios negros de São Paulo, atua contra o apagamento da história negra ao levantar o debate sobre a racialização da memória pública com uma visão crítica sobre o monumentos.
“Patrimônio, do latim ‘patrimonium’, remete à herança, então a pergunta que se faz é: qual herança está sendo preservada? É necessária uma revisão da memória, pelo viés das populações negras, indígenas, nordestina e migrante, propondo outro olhar para a história, em perspectiva interseccional – a partir da classe, da raça e do gênero, de modo que possamos nos ver como parte dessa história, propondo outras narrativas para compreender os imaginários urbanos, apresentando outras narrativas a partir da cartografia e dos patrimônios”, defende o coletivo, que é formado por museólogas, geógrafas, historiadores e pesquisadores.
A proposta de retirada das estátuas de escravocratas e bandeirantes acirra o debate sobre o contexto histórico em que as figuras homenageadas estão inseridas e o modo como a sociedade atual deveria tratar o tema. O presidente do Instituto Luiz Gama, o jurista e filósofo Silvio de Almeida, considera importante questionar o motivo dessas homenagens. “Se configura ‘anacronismo’ falar da violência dos bandeirantes contra negros e indígenas porque ‘o tempo era outro’, então não podemos também olhar criticamente para o nazismo, o colonialismo e para a segregação racial”, pontua.
Ressignificar
No Paraguai, o monumento ao ex-presidente Alfredo Stroessner, que comandou a ditadura no país entre 1954 e 1989, foi derrubado e ressignificado em uma nova escultura em homenagem aos desaparecidos, onde os pedaços da antiga estátua aparecem esmagados entre dois blocos de concreto.
Durante a Ditadura Stroessner, 425 pessoas desapareceram, mais de 20 mil foram presos e torturados e outros 20 mil foram para o exílio, segundo a Comissão da Verdade paraguaia. Placas de ruas e homenagens ao ditador foram retiradas e estão no “Museu da Memória”, onde são observadas dentro do contexto das atrocidades e violações dos Direitos Humanos cometidas durante a ditadura.
“O patrimônio cultural não diz respeito só ao passado, mas ele também conta uma história do presente. Ele só vai ter sentido se acompanhar o processo social”, pontua a arquiteta Danielle Santana.
Para diminuir a presença desses monumentos na vida das cidades brasileiras, projetos de lei defendem substituí-los, retirá-los ou contextualizá-los, neste caso explicando quem são e o que fizeram as figuras homenageadas. Há proposições em todas as esferas: nas Câmaras Municipais, nas Assembleias Legislativas e na Câmara dos Deputados.
Cada projeto tem sua particularidade. Eles se diferenciam pela forma da participação popular, pelos destinos de cada símbolo e e pelas propostas de ações reparatórias, como estudo da cultura negra e indígena. Têm como objetivo comum, porém, rever homenagens públicas a pessoas que feriram populações vulneráveis no passado.
Em junho de 2020, a deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL) apresentou um projeto de lei para retirar das ruas e levar para museus as estátuas e monumentos que fazem homenagens a escravocratas e personalidades condenadas por violações dos Direitos Humanos. O projeto também prevê a alteração dos nomes de rodovias que fazem homenagens aos bandeirantes. Atualmente, o projeto aguarda o parecer conjunto do Núcleos Especializados de Habitação e Urbanismo (NEHABURB) e do Núcleo da Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial (NUDDIR), ambos da Defensoria Pública.
“Ter uma estátua do Borba Gato é como se a gente endossasse a violência das periferias, as pessoas em situação de rua, o encarceramento. É como se a gente endossasse a desigualdade”, se posicionou a parlamentar em suas redes sociais.
Uma das iniciativas legislativas sobre o tema mais avançadas está em discussão na Câmara Municipal de São Paulo. Projeto de lei apresentado pela vereadora Luana Alves (PSOL) propõe, além da retirada de estátuas, em especial quando não são tombadas, possibilidades de realocação dos monumentos ou inserção de placas e sinais que tragam contexto histórico. O projeto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e no Congresso de Comissões.
Em São Paulo, além da estátua, a figura do Borba Gato é homenageada em nomes de escola de educação infantil, grupo de escoteiros e estação de metrô. Para o coletivo Angana, a falta de debate crítico sobre quem foram e o que fizeram os bandeirantes, como Borba Gato, cria uma alienação em torno da figura.
“Agora é uma importante oportunidade para fomentar o debate público e fazer com que os monumentos, nome que deriva do grego ‘mnemosynon’ e do latim ‘monere’, significando relembrar, nos permita a reflexão crítica sobre a história”, diz o coletivo.