Oda Mae Brown, John Coffey, Deus, Princesa Tiana. Todos esses personagens negros carregam algo em comum: o estereótipo do negro mágico. A ideia consiste em personagem negro, normalmente coadjuvante, que possui alguma aura mística, sem muita instrução, boa intenção e que utiliza este “poder” para salvar um branco. Ou como no caso de Tiana, única princesa negra das animações da Disney, que passa o filme todo na forma de um animal encantado, mais precisamente um sapo.
O estereótipo que se enquadra no conceito de negro mágico perpetua uma ideia de subserviência negra disfarçada de inclusão. É o que analisa o jornalista Aquiles Marchel Argolo, que produz matérias e artigos criticando – principalmente – o racismo velado em produções artísticas e culturais.
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“Em geral, é uma forma de oferecer sub-representatividade. O negro mágico é sempre coadjuvante, sempre está ali para ancorar o intelecto e a moral do protagonista branco. Isso entra no imaginário popular e reforça a ideia de que nós, pessoas negras, somos apenas escadas para ascensão dos brancos”, avalia o comunicólogo.
Poderes mágicos para alcançar algum valor
O termo “negro mágico” foi cunhado pelo cineasta Spike Lee no início dos anos 2000, quando ele compartilhou com estudantes de cinema sua insatisfação por Hollywood continuar investindo nesta premissa estereótipada dos personagens negros. O conceito também é analisado no livro “Horror Noire: A Representação Negra no Cinema de Terror”, de Robin R. Means Coleman.
Nos anos 1980, época em que o autossacrifício negro e eventuais aspectos místicos destes personagens – herdados de feiticeiros africanos – começaram a ganhar força, Hollywood ainda não sabia muito bem como encaixar atores nas histórias de uma forma “politicamente correta”, segundo Coleman. Em muitas produções da década, personagens negros se viam pressionados a valorizar um sistema de lealdade e confiança unilateral – deles para os brancos –, mas sem esperar a mesma consideração em retorno.
Para Aquiles, no entanto, o cinema molda pensamentos. Pessoas brancas assistem essas obras sem análise crítica e trazem para vida real a ideia de que todos os negros tem algum tipo de sabedoria ancestral vinda de espíritos africanos.
“Isso desrespeita as subjetividades individuais e é uma violência porque apaga nossas individualidades. Que adolescente preto nunca serviu de conselheiro amoroso do amigo branco mesmo não tendo relacionamento? Os filmes acabam reforçando o lugar do preto como coadjuvante do branco que precisa ser guiado”, avalia.
Na obra de Robin R. Means Coleman, a autora pontua ainda que ao personagem negro mágico é exigida uma natureza impecavelmente boa, para se sacrificar pelo bem dos brancos, a fim de conquistar um valor talvez equivalente ao dos personagens principais – majoritariamente brancos.
“Isso estava (e ainda está) presente tanto em filmes de terror como em dramas e ficção científica e a fórmula tem rendido prêmios, incluindo o Oscar, até os dias de hoje”, enfatiza a autora.
“Por que você não é como John Coffey?”
“Acho que a obra ‘À Espera de um Milagre’ é marcante porque o filme fez muito sucesso e as pessoas não repararam que os dons do John Coffey [Michael Clark Duncan] só servem para resolver os problemas dos brancos. Ele mesmo acaba prejudicado por seus dons”, pondera Aquiles Marchel.
O artesão José Carvalho*, de 34 anos, foi diretamente afetado pelo personagem citado pelo jornalista Aquiles. Segundo ele, na época da escola, o bullying era constante e ocorria por dois motivos: por que ele se assemelhava ao personagem de Michael Clark Duncan e por vir de uma família candomblecista, fato que fazia seus colegas de classe pensarem que ele possuía poderes mágicos.
“Na escola era um inferno. Até hoje tenho traumas do tanto que as pessoas me provocavam. Foi uma adolescência marcada pela pergunta ‘por que você não é como John Coffey, já que sua família é macumbeira e você parece com ele?’ Como se eu tivesse obrigação de servir aos outros alunos com meus ‘dons’ espirituais”, relata.
“O que as pessoas não se dão conta é que nós, negros, não somos todos iguais e nem temos obrigação de utilizar das nossas habilidades para servi-los. O povo assiste tanto filme que mostra isso que começa a querer repetir tudo que acontece. Só que isso desgasta a gente que é negro”, completa o artesão.
Em seu livro, Robin R. Means Coleman enfatiza que a ideia de negro mágico foi criada por brancos e, portanto, não reflete os interesses do que os negros têm a dizer em uma história. Em Horror Noire, a autora ainda diferencia um “filme negro” de um “filme com negros”, portanto, apenas inserir atores e personagens em uma narrativa orientada por e para brancos não faz tanto assim pela representatividade como cineastas e executivos de Hollywood gostam de acreditar.
É necessário expandir o imaginário
Cineastas como Spike Lee, Jordan Peele, Ava DuVernay, Barry Jenkins e Ryan Coogler dão alguns exemplos de como os negros têm muito mais a contribuir com o cinema do que como meros coadjuvantes e ferramentas na evolução dos brancos. Produções como “Infiltrado na Klan”, “Selma”, “Corra!” e “Pantera Negra” mostram como a representatividade funciona de verdade.
O jornalista Aquiles Marchel pontua que pessoas negras podem passar a buscar nas obras do cinema como as pessoas negras são retratadas em filmes dirigidos por diretores negros, que fogem ao estereótipo do negro mágico.
“A diferença de tratamento fica clara. Spike Lee, Ryan Coogler e Jordan Peele já deram exemplos de como é possível ter pessoas pretas no protagonismo sem apelações estereotipadas”, avalia.
Aquiles ressalta ainda que atualmente, quem escreve muito bem esse oposto é Jordan Peele. No filme “Nós”, ele traz a protagonista como alguém que sente que tem algo errado naquele ambiente, mas em nenhum momento ela age como uma bruxa conselheira salvadora.
Ainda segundo ele, Ryan Coogler dirigiu ‘Creed’, filme que poderia facilmente ter caído no estereótipo do negro mágico, com o personagem do Michael B. Jordan sendo um apoio espiritual para o Rocky, de Sylvester Stallone, “mas, graças à sensibilidade do diretor, a relação dos dois é orgânica e o Creed tem sua complexidade respeitada. Se fosse um diretor branco acho que a história seria diferente”, pondera.
Contudo, o jornalista finaliza dizendo que para pessoas brancas deixarem de reforçar o estereótipo do negro mágico seja mais difícil, mas não impossível.
“Elas [pessoas brancas] partem da premissa de serem as referências em tudo, então o caminho para entender que está acompanhando um reforço racista é mais longo. Mas talvez prestar atenção ao que jornalistas e cineastas negros falam sobre o assunto seja um começo”, finaliza.
*José Carvalho é um nome fictício, pois o artesão teme que sua imagem seja atrelada novamente ao personagem John Coffey do cinema.
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