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No Maranhão, Bumba meu Boi mescla cultura negra e indígena

A influência indígena e negra está estampada nas apresentações do Bumba-Boi, manifestação cultural centenária do Maranhão, que mobiliza milhares de pessoas durante os festejos juninos
Boi na Festa de São Marçal em São Luís.

Foto: Secretaria do Turismo de São Luís (Setur)

8 de setembro de 2024

Dezenas de pessoas de todas as idades vestidas de boi, vaqueiro, indígenas e caboclos se misturam em coreografias ao som dos instrumentos de percussão e das toadas, músicas evocadas por homens de voz imponente. As indumentárias são coloridas e ornamentadas. No caso das “índias” ou “tapuias” (como são chamadas em alguns grupos), levam plumas. Já os vaqueiros têm chapéus feitos com pedrarias e franjas.

A influência indígena e negra está estampada nas apresentações do Bumba meu Boi, manifestação cultural centenária do Maranhão, que mobiliza milhares de pessoas durante os festejos juninos. Associada ao calendário católico, o Dia de São João marca o batismo dos bois, momento em que os grupos recebem a benção do santo para começar a brincadeira. O Dia de São Pedro e o Dia de São Marçal também fazem parte do calendário das festas e recebem promessas dos brincantes.

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Além dos santos católicos, Bumba meu Boi também é a festa dos “encantados” e “caboclos”, que são as entidades espirituais das religiosidades de matriz africana e afro-indígena presentes em todo o estado do Maranhão, como o tambor de mina e a pajelança. Os instrumentos e as danças são característicos desses dois povos.

Jovens confeccionam pandeiros no Boi da Floresta.
Jovens confeccionam pandeiros no Boi da Floresta. (Setur)

Para o operador de turismo e produtor cultural Guilherme Cajueiro, o sincretismo religioso é a base da festividade. “O boi tem relação com a bíblia, mas é evidente a união entre os negros e indígenas, que se reconhecem na luta pela liberdade. Essas culturas têm essa semelhança: são manifestações formadas na resistência”, explica.

Existem mais de 100 grupos de Bumba meu Boi em São Luís e na região metropolitana, de acordo com o projeto Caminhos da Boiada, do Grupo de Estudos Culturais da Universidade Federal do Maranhão. Se for considerado todo o estado, o número pode chegar a mais de 400. 

Essas centenas de grupo se aglutinam em cinco tipos de “sotaques” ou variações rítmicas: o sotaque de matraca ou sotaque da Ilha, que surgiu em São Luís; o sotaque de zabumba ou sotaque de Guimarães (nome do município onde surgiu, localizado no litoral ocidental maranhense); o sotaque de costa de mão, natural da cidade de Cururupu, no qual os pandeiristas batem no instrumento com as costas das mãos; o sotaque de orquestra, o ritmo mais novo, nascido na década de 50. E por fim, o sotaque da baixada, oriunda da região da baixada maranhense, também conhecido como sotaque de Pindaré, por conta do boi mais famoso, o Boi de Pindaré.

Boi do Boi da Floresta.
Boi do Boi da Floresta. (Setur)

Uma festa preta

Cerca de 75% da população do Maranhão é negra, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O estado também ocupa o 5º lugar no percentual de pessoas declaradas pretas no país (cerca de 12%), atrás somente da Bahia, Rio de Janeiro, Espírito Santos e Tocantins.

A população negra é atuante nos grupos de Bumba meu Boi. Segundo a historiadora Carolina Martins, doutora em História Social, os cordões da festividade eram formados pelos trabalhadores operários, rurais e estivadores e podiam ser compreendidos como espaços de sociabilidade dos trabalhadores negros.

Um desses estivadores foi mestre Apolônio Melônio, fundador do Bumba meu Boi da Floresta, um dos mais tradicionais de sotaque da baixada. Fundado em 1972, o Boi da Floresta está localizado no bairro da Liberdade, em São Luís, reconhecido como quilombo urbano. Com 160 mil habitantes, o Quilombo da Liberdade abriga a maior população negra da capital maranhense e é berço de manifestações culturais afro, como os grupos de Bumba meu Boi, clubes de reggae e terreiros.

Hoje a presidência do Boi da Floresta está a cargo da companheira de Apolônio, a produtora cultural e educadora Nadir Cruz. Nadir é uma figura reconhecida pela Liberdade e desenvolve um papel de liderança no bairro, sobretudo com a juventude.

“Ser mulher no boi é uma responsabilidade imensa, tenho um sentimento de mãe. Aqui tem gente de três a 86 anos. Não chega a ser um trabalho de assistência formal, mas nós vamos atrás dos jovens, assim como o tráfico e mostramos: aqui vale mais a pena. E eles vem. É por isso que nós não abrimos seleção para fazer parte do grupo. A seleção exclui alguém, mas a cultura precisa ser inclusiva”, confessa Nadir.

Nadir Cruz. (Setur)
Nadir Cruz. (Setur)

Outro boi presidido por uma mulher no Quilombo Liberdade é o Boi de Leonardo, do mestre Leonardo Martins do Santos, atualmente comandado por sua quinta filha, Regina Avelar. O Boi é composto por mais de 80 integrantes, que embalam o sotaque de zabumba na Ilha. Parte dessa sonoridade vem das mãos de Paulo Roberto Chagas, de 32 anos, mestre de percussão e um dos jovens responsáveis por levar a cultura do boi adiante.

“Não largo isso por nada. São João é o período mais feliz do ano, mas também são meses se preparando. Os ensaios já começam no sábado de aleluia, na véspera do domingo de páscoa. Daí chega o batismo do boi em junho, os arraiais e nós só paramos na morte do boi, que pode ser de julho até novembro, dependendo do boi. Nós vivemos disso”, conta.

Regina Avelar. (Setur)
Regina Avelar. (Setur)

Matraca, o instrumento popular

Em São Luís qualquer pessoa pode potencializar o som de um grupo de boi. Basta sair de casa com a sua matraca, um instrumento popular que consiste somente em dois pedaços de madeira retangulares. Ao se chocarem, esse som estridente se une ao dos pandeirões, tambores onças e maracás, arrastando os brincantes.

De acordo com o historiador Marcelo Cardoso, a incorporação da matraca no boi vem dos populares. Assim como o samba e demais manifestações culturais da população negra foram oprimidas no Brasil, o Bumba meu Boi foi alvo da repressão das autoridades ao longo do século XIX. Em um desses episódios, a polícia prendeu os participantes do boi da Madre Deus, um dos primeiros da Ilha. Em resposta, as pessoas marcharam até a casa do coronel e começaram a bater matraca em protesto. A partir daí, seu uso passou a se espalhar.

Na festa de São Marçal, brincantes compram matraca por dez reais.
Na festa de São Marçal, brincantes compram matraca por dez reais. (Beatriz Mazzei)

“A gente sabe que o boi é bom quando ele arrasta as pessoas com suas matracas e elas vão preenchendo o som. Além da Madre Deus, os maiores são o Boi de Maioba e Boi de Maracanã”, compartilha.

Da perseguição à patrimonialização, o Bumba meu Boi foi reconhecido desde 2019 como Patrimônio Cultural Imaterial da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) por conta de sua relevância para a identidade local.

  • Beatriz Mazzei

    Jornalista com especialização em Diversidade & Inclusão. Atua com pautas voltadas para questões raciais, sociais e culturais. Nascida durante o carnaval, tem interesse especial pelas manifestações da cultura popular brasileira.

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