No cinema internacional, os atores negros sempre foram figuras presentes nos filmes de terror, principalmente como coadjuvantes, em papéis problemáticos, como descreve a escritora Robin R. Means Coleman no seu livro ‘Horror Noire: Blacks in American Horror Films from the 1890s to Present’ (Terror noir: negros nos filmes de terror americanos de 1890 até o presente, em tradução livre).
Vítimas de violências terríveis ou até mesmo com personagens ridicularizados, sendo os primeiros a morrer ou se sacrificar para salvar o personagem branco, os negros eram colocados em segundo plano no gênero terror, fato que mudou nos últimos tempos. No período entre os anos 1960 e 1970, filmes de terror começaram a tratar negros como personagens robustos, com histórias e narrativas mais complexas, centradas na cultura e experiência negra.
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O filme de terror experimental de Bill Gunn, em 1973, Ganja & Hess, segundo Robin, veio para o cinema como uma provocação a respeito de raça, classe, doença mental e vício, fato que fez a obra conquistar os críticos do Festival de Cannes. No entanto, nenhum estúdio de Hollywood quis distribuir o filme.
Mudando o clichê
O filme de terror que marca a mudança no clichê de que personagens negros são os primeiros a morrer é o longa ‘A Noite dos Mortos Vivos’, de George Romero (1968). O ator Duane Jones interpreta Ben, um personagem que lidera um grupo de brancos durante um apocalipse zumbi.
Por mais que nas décadas de 1980, 1990 e 2000 os papéis pensados para os negros nos filmes de terror tenham novamente voltado para antigos estereótipos, diretores como Jordan Peele, Ernest Dickerson, Rusty Cundieff, Meosha Bean, Nikyatu Jusu e Deon Taylor têm apostado em personagens negros com narrativas que valorizam tanto os atores quanto a trama.
“O gênero de terror está amadurecendo e se tornando mais imaginativo e inclusivo — em quem pode ser herói e anti-herói e quem pode ser monstro e salvador. A emergência de filmes de horror negro é só um capítulo em uma história que também inclui mulheres ganhando papéis de destaque”, afirma a escritora Robin R. Means Coleman.
Filmes negros de terror ou filmes de terror com negros?
Ainda no livro assinado por Robin R. Means Coleman, a autora traz a discussão de que nem sempre um filme de terror com personagens negros aborda a herança cultural e a realidade da população negra. Ela exemplifica essas divergências ao dividir as produções como ‘filmes de terror com negros’ e ‘filmes negros de terror’. Na análise, Coleman exclui longas que possuam apenas personagens negros inseridos no contexto, já que eles não elaboram uma percepção significativa a respeito da relação entre negritude e o gênero do terror.
Para a escritora, os filmes de terror com negros lidam diretamente com a população negra e a negritude em um contexto de terror. Segundo ela, essas obras são lançadas por grandes estúdios e são produzidas por pessoas não negras para o público geral. “Eles perturbam as noções do espectador em relação à uma vida racional, mundana e segura. Afinal, não há nada mais apavorante do que a ameaça à sensação de segurança”, diz Coleman,
Algumas produções se utilizam de monstros fictícios para simular a questão da negritude e das diferenças raciais, e o conceito de bem e mal muitas vezes é centrado na questão racial nestes filmes. No livro ‘Horror Noire’, Coleman dá alguns exemplos de filmes de terror com negros, como ‘King Kong’ (1933), ‘A noite dos mortos-vivos’ (1968), ‘A maldição dos mortos-vivos’ (1988) e ‘O mistério de Candyman’ (1992).
Já os filmes negros de terror, segundo a escritora, possuem um foco narrativo adicional que chama a atenção para a questão da identidade racial. “Elas abordam a negritude de uma forma multidisciplinar, envolvendo cultura negra, história, ideologias, experiências, políticas, linguagem, humor, estética, estilo e música, por exemplo”, diz Coleman.
“Isso significa que eles têm um compromisso maior com a autenticidade da negritude, deixando de lado os estereótipos rasos e abordando o que é ser negro de uma forma mais abrangente, em um contexto de terror”, completa. ‘Def by Temptation’ (1990), ‘Um Vampiro no Brooklyn’ (1995), ‘Corra’ (2017) e ‘Nós’ (2019) são exemplos de filmes negros de terror, de acordo com Coleman.
Veja quatro obras de terror recentes protagonizadas por negros
– Corra, de Jordan Peele (2017)
Originalmente chamado de ‘Get Out’, a obra une suspense e terror psicológico e foi o primeiro longa-metragem dirigido pelo norte-americano Jordan Peele. Com Daniel Kaluuya e Allison Williams no elenco principal, o filme fala sobre um jovem negro, apaixonado, que viaja a fim de conhecer a família branca da namorada. Além de abordar relacionamentos interraciais, a trama também mostra a diferença da abordagem policial para negros e brancos e exemplifica de maneira brutal o racismo, quando as habilidades físicas e intelectuais dos negros são “leiloadas” entre um grupo elitista de brancos.
– Nós, de Jordan Peele (2019)
Com Lupita Nyong’o como protagonista da obra, ‘Nós’ (Us) abusa das críticas sociais, misturadas com terror psicológico e momentos de reflexão. Uma família afro-americana viaja para a antiga casa de praia de seus avós em Santa Cruz, na Califórnia, para um final de semana entre amigos. A diversão, então, é interrompida quando, durante a noite, eles são atacados por um grupo de clones, carregando tesouras douradas e vestindo trajes vermelhos. Os clones, que vivem no subsolo, mostram a nítida diferença social dos que vivem “em cima” para os menos favorecidos, que estão “embaixo”.
– O Que Ficou Para Trás, de Remi Weeks (2020)
O Que Ficou Para Trás faz parte dos filmes produzidos pela Netflix e integra a nova era do terror. Abordando problemas sociais que afetam a população negra, como a crise migratória na Europa, o longa utiliza ficção para falar sobre o terror real vivido pelos refugiados. Na trama, um casal oriundo do Sudão migra para a Inglaterra, em uma viagem de barco terrível. Chegando ao destino, não podem trabalhar nem deixar sua casa pelo período de tempo em que serão avaliados. A situação se torna difícil quando ambos começam a presenciar estranhos fenômenos na casa que ameaçam suas vidas.
– A Lenda de Candyman, de Nia da Costa (2021)
No longa, a lenda de um espírito assassino conhecido como ‘Candyman‘, interpretado por Tony Todd, que assolou a população de Chicago anos atrás, aterrorizando os moradores do complexo habitacional de Cabini Green. Agora, o local foi renovado e é lar de cidadãos de alta classe, mas a antiga lenda urbana retorna para aterrorizar os moradores. A diretora Nia da Costa constrói uma obra moderna de horror, socialmente consciente e repleta de mensagens que se encaixam bem atualmente. Partindo de uma história que tornou-se emblemática pelo tratamento de questões de raça, classe e gênero, a obra é considerada pela crítica como um manifesto antirracista.
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