Onde quer que aconteça uma roda de Capoeira Angola, Vicente Ferreira Pastinha, ou Mestre Pastinha será reverenciado de alguma forma. O soteropolitano que, hoje, completaria 132 anos, deixou como legado a disseminação dos princípios do movimento cultural trazido de África, tornando-se símbolo da identidade negra nordestina e brasileira. No Largo do Cruzeiro de São Francisco, onde começou a lecionar, fundou a primeira escola de Capoeira Angola do país, importante instrumento para a partilha da prática com foco na não violência e na perpetuação dos conceitos que formou muitos mestres que até hoje colhem os frutos das sementes plantadas por Mestre Pastinha.
“Mestre Pastinha aparece como um ancestral dos capoeiristas, que deixa muitos legados e ensinamentos e que, infelizmente, no mundo da capoeira nós não temos muitas pessoas com a condição de absorver esse conhecimento. De qualquer forma, aqueles que viram o Mestre Pastinha como referência se aproveitaram disso e fizeram, da Capoeira Angola, a representação simbólica de parte da cultura brasileira. A prova maior do significado do Mestre Pastinha é termos a Capoeira Angola, hoje, em vários países do mundo, o que nos traz felicidade por sabermos que ela não foi extinguida”. O comentário é de Mestre Moraes, que foi aluno de Pastinha. Fundador do GCAP – Grupo de Capoeira Angola Pelourinho, doutorando em Cultura e Sociedade pela mesma Universidade Federal da Bahia (UFBA) e um dos principais mestres de Salvador, Moraes reconhece a importância ancestral de Pastinha para a cultura nordestina e brasileira.
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De acordo com sua biografia, Benedito foi o nome de quem despertou o seu interesse de Pastinha pela arte de jogar capoeira. Em primeiro momento, foi seu rival, mas logo passou a ser o professor de Pastinha. Ainda aos 10 anos, diariamente frequentava a casa do colega, que, em entrevistas, afirmava ser ‘um preto africano’ quem lhe ensinou toda a base. Transformar o conflito em aprendizado, fez com que, por anos, o Mestre sempre tivesse respeito entre os praticantes, passando anos de sua vida pregando honradez, dignidade e decência aos seus praticantes.
Para Pastinha, ser Mestre era sinônimo de ser ouvido, de passar para frente o que havia aprendido e o que vivenciava nas rodas. Até por sua passagem pela Marinha do Brasil, a qual foi vinculado por oito anos, conseguiu dar um jeito de ensinar os colegas de trabalho. Em paralelo, aprender mais sobre cultura não ficou de fora do seu cotidiano, que também tinha espaço para as aulas no Liceu de Artes e Ofício, onde conseguiu acessar o universo musical por uma outra perspectiva, aprendendo a tocar violão.
O ativismo político pela valorização da capoeira também tornou-se marca registrada da trajetória de Pastinha. Ele enfrentou o tempo em que a atividade ainda era tida como proibida pelo Código Penal brasileiro, uma das frentes do racismo contra movimentos culturais com origens em África. Dois a seis meses era o tempo da pena para quem fosse flagrado jogando. No caso de Mestre Pastinha, a pena poderia dobrar, pelo simples fato de ele ser Mestre e passar adiante os ensinamentos. A forte repressão fez com que ele ficasse de 1913 e 1934 sem dar aulas.
O ativismo político pela valorização da capoeira também tornou-se marca registrada da trajetória de Pastinha
Com o compromisso de voltar a dar força e visibilidade à prática, já longe dos atos de repressão contra a manifestação cultural negra, em 1941, Mestre Pastinha voltou a jogar e ensinar. Raimundo Aberrê foi o responsável pelo seu retorno, fazendo um convite para retomar a ensinar junto com outros nomes consagrados como Mestre Amorzinho e Mestre Maré. A força e lealdade dos colegas o fez fundar o Centro Esportivo Capoeira Angola, o ‘CECA’. O espaço, também conhecido como ‘escola de mestres’, conseguiu formar praticantes e mais uma vez fortalecer a capoeira como um símbolo imaterial não só para a Bahia e o Brasil, mas para o mundo.
Aos poucos, Pastinha foi conquistando mais reconhecimento. Com apoio do poder político, conseguiu representar a Capoeira Angola no 1º Festival Mundial das Artes Negras, sediado em Dacar, no Senegal, em 1966. Logo em seguida, no entanto, uma notícia desestruturou emocional e mentalmente o Mestre Pastinha: a retirada do casarão onde ele lecionava, no Pelourinho. O local, por ser foco de turismo da capital baiana, acabou passando por um processo de higienização social, fechando as portas do centro de Capoeira Angola.
Um dos alunos da época, Mestre Bola Sete, que já leciona desde 1979, em conversa exclusiva com a Alma Preta Jornalismo, relembra os anos em que passou convivendo nas rodas com o símbolo da cultura popular baiana. “Para mim, é um orgulho ter passado doze anos aprendendo e absorvendo os ensinamentos passados pelo meu Mestre, o Pastinha. O conheci no Largo do Pelourinho, em um casarão no número dezenove e continuei seguindo seus passos até a sua saída para a Gregório de Matos, número 51. Onde ele estava, eu também estava. Foram anos de muita aprendizagem”, conta o Mestre.
A depressão e a falta de incentivo do poder público foram determinantes para Mestre Pastinha sucumbir à depressão. Em seus últimos dias de vida, enfrentou diversos problemas de saúde como cegueira e trombose, além de ficar paralítico. Mas pôde contar com a lealdade de sua companheia, Maria Romelia Oliveira, que vendia acarajé para comprar a comida do mestre e ajudar nos remedios. Romélia também contou com a ajuda do fiél discipulo de Pastinha, Curió. Na fase final de sua vida, foi encaminhado para o abrigo Dom Pedro II, no bairro de Piatã, também na capital baiana, onde permaneceu até novembro de 1981 – quando já estava com seus 92 anos e faleceu.
Com reconhecimento póstumo, o Mestre é citado nas rodas de ensinamento dentro e fora da cidade, sempre pautado como o professor da filosofia popular, que pregava o respeito e a humildade em todas as atividades que envolviam a capoeira. A sua contribuição também está eternizada no álbum de 1969, intitulado ‘Capoeira Angola’, com as músicas que entoava nas rodas. “O que eu tenho foi Deus quem me deu”, cantava Pastinha. Algumas entrevistas exclusivas foram registradas em um documentário Mestre Pastinha, Rei da Capoeira, disponível no Youtube.
Para o Mestre Bola Sete, além da importância de organizar a história junto à Capoeira Angola e documentar sua contribuição, Mestre Pastinha deixa de legado algo que compartilha em suas aulas na Escola Tradicional de Capoeira Angola, no bairro de Santo Antônio Além do Carmo. “Além de documentar a sua história através do livro que, originalmente, se chamaria ‘Quando As Pernas Fazem Mizerê’, mas acabou sendo publicado pelo nome de ‘Herança de Pastinha’, meu Mestre deixou de legado para mim a importância que ele mesmo dava para a ginga. Ele sempre dizia que um bom capoeirista era quem tinha ginga e isso eu passo para frente, reafirmando que a movimentação é importantíssima. Posso dizer que, enquanto aluno, aprendi muito sobre isso com ele, que focava demais nesse lado. O restante, ele geralmente deixava para o seu Contra Mestre, chamado João Pequeno”, relembra Bola Sete.
Sentimento parecido com o que Mestre Moraes ressalta de herança deixada. “Ele significa demais para a nossa cultura. Para o fato dele estar fazendo aniversário, hoje, o maior presente que nós, capoeiristas baianos angoleiros, podemos dar para ele é a manutenção da capoeira como uma manifestação que continua viva e com outras linguagens, que vão sempre abordar a importância dos movimentos afrodescendentes”, concluiu.