Paris – A Alma Preta percorreu diversas regiões da Grande Paris conversando com moradores para ouvir opiniões dos parisienses sobre as Olimpíadas. A maioria dos locais visitados pela reportagem fica no departamento 93 — Seine-Saint-Denis —, região considerada a mais pobre da metrópole francesa.
Nesses locais, há forte presença de pessoas árabes, muçulmanas e negras. No caminho de metrô entre as áreas mais conhecidos de Paris e as mais visitadas, é nítida a diferença entre a demografia da região central e as bordas.
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Para o olhar brasileiro, essas áreas não parecem periferias. São regiões estruturadas e com inúmeras estações de trem e metrô. Apesar disso, são vistas como áreas pobres e até perigosas pelos parisienses. Nelas estão concentradas populações de imigrantes e por lá não é tão fácil se comunicar em inglês.
É o que confirma, por exemplo, Anne Isabelle, senegalesa de 44 anos, presidente do grupo do conselho patrimonial Baobab, que vive há 25 anos na França. Em conversa com a Alma Preta em frente à catedral de Notre-Dame — erguida antes da chegada dos portugueses ao Brasil —, ela relata que a maioria das pessoas negras na região moram na periferia de Paris.
“É a realidade. Quando você vai a Montreuil, você vê muitas pessoas negras, assim como no Departamento 93 são muitos negros”, conta a moradora da comuna de Drancy, que tem cerca de 69 mil habitantes — as comunas são como os municípios brasileiros. A senegalesa diz que, apesar de achar que as Olimpíadas são boas para a economia, os ingressos são caros demais. Para ela, restou levar os filhos para ver as estruturas antes do início das competições.
Em Montreuil, na periferia da região metropolitana de Paris, moradores ouvidos pela Alma Preta também não demonstram muita empolgação com o megaevento. A comuna tem cerca de 106 mil habitantes. Para o comerciante marroquino Hicham Saad, de 44 anos, que trabalha aos finais de semana em uma loja de eletrônicos, a vida piorou com a chegada dos Jogos.
“A vida está difícil agora, as pessoas pensam que quando vêm participar das Olimpíadas a vida fica boa e a economia fica boa — mas, não, é diferente. Isso é uma merda. Tudo está fechado, a passagem do metrô aumentou o triplo. Isso não é bom”, reclamou.
A passagem de metrô foi uma queixa ouvida em todas as regiões visitadas. Na Grande Paris, o bilhete aumentou de € 2,15 para € 4 (R$ 13,44 para R$ 25) durante o período das Olimpíadas, mesmo para quem mora na cidade. Para muitos cidadãos, a saída foi comprar bilhetes com antecedência.
O marroquino também diz que gostaria de ver os Jogos ao vivo, mas que os preços dos ingressos estão muito altos. Mesmo vivendo em Paris, ele deve acompanhar o espetáculo somente pela televisão. Para ele, não há vantagens nos Jogos para as pessoas comuns: “Talvez seja bom para o sistema, mas não para o povo”.
Outras várias pessoas que moram ou estão com frequência em Paris relataram à Alma Preta que, de forma geral, a capital francesa está pouco movimentada. Além disso, a maioria, apesar de algum tipo de empolgação, compartilha insatisfações.
O bangladês Rashid Ahmed vive há 12 anos em Montreuil e tem há cinco anos uma loja de eletrônicos com pelo menos quatro funcionários, em frente à do marroquino Hicham. Assim como o colega imigrante, ele não parece empolgado com o espírito olímpico e reclama do impacto em suas vendas.
“Para os negócios, Paris é muito boa. Mas, agora, durante as Olimpíadas, está travado. As pessoas de Paris estão de férias e os negócios não vão bem”, disse o comerciante. Durante o verão, muitos cidadãos de Paris deixam a cidade para gozar de férias. “Todos os turistas estão vivendo em Paris, na parte central da cidade, e nós estamos do lado de fora”.
A psicóloga italiana Cameran Carola, de 57 anos, vive há 34 em Paris e também é moradora de Montreuil. “Você tem todas essas áreas como Bagnolet, Montreuil, Aubervillers, são todos subúrbios, são populares, não há turismo — por que, quem vem aqui?”, relata. Ela conta que se mudou do centro de Paris para a região há três anos devido ao preço alto do aluguel.
Sobre as Olimpíadas, Carola é categórica: “Todos nos sentimos mal. Não sou só eu, é uma opinião geral, tenho ouvido muito isso”. A italiana reclama das diversas estações fechadas durante os Jogos e também dos bloqueios. Nas áreas bloqueadas, moradores precisam de QR codes para circular.
Para ela, a situação política da França contribui para a sensação negativa em relação às Olimpíadas, pois a tensão gerada pelas recentes eleições no país ainda não se dissipou. Ela cita que o apoio francês a Israel e à Ucrânia gera temores em alguns cidadãos de que haja episódios de violência durante os Jogos.
Jogos também geram esperança e chance de mostrar ‘outra periferia‘
A falta de empolgação não é unanimidade. A Alma Preta esteve em uma fan fest olímpica em L’Île-Saint-Denis — de cerca de 8,5 mil habitantes —, ao norte da Grande Paris, também na periferia. Na ocasião, centenas de pessoas estiveram presentes, a maioria imigrantes africanos. A expectativa dos organizadores é de que até 1,3 mil pessoas passem diariamente pelo local. Por lá, as pessoas ouvidas pela reportagem — imigrantes de países como Mali, Nigéria, Marrocos e Costa do Marfim — estavam felizes com os Jogos.
A Alma Preta também foi às comunas de Aubervilliers e Bagnolet — de 84 mil e 35 mil habitantes respectivamente. Na comuna de Bagnolet, vizinha a Montreuil, o jovem francês Kirian Procyk, de 27 anos, passou apressado saindo de um prédio com cara de conjunto habitacional. No lugar, poucas pessoas circulavam nas ruas e menos ainda falavam inglês. Procyk diz que naquela região nem sequer parece que as Olimpíadas estão acontecendo, mas que ele e seus amigos veem a competição com bons olhos: “Estão todos tranquilos em relação a isso, é bem legal”.
O designer gráfico afirma que os principais problemas são enfrentados pelos moradores de Paris, que precisam lidar com os bloqueios.
Já em Aubervilliers, próximo a uma das principais sedes dos Jogos, o Stade de France — que recebe competições de atletismo — diversas pessoas falaram à reportagem. A comuna é uma região movimentada e abriga uma estação de metrô e uma praça em homenagem ao pensador Aimé Césaire.
“É algo muito bom para cidade, os Jogos Olímpicos. Porque o [departamento] 93 e, em todo caso, Aubervilliers, é bastante pobre, então isso dá esperança às pessoas. E a cidade ficou muito bonita”, disse à Alma Preta a moradora Misa Rabenanahary, de 45 anos, que caminhava pela praça nomeada em memória ao ícone do movimento da négritude.
Rabenanahary também reclama do preço do metrô. “O bilhete subiu para € 4. Isso é muito, muito, muito caro para as pessoas que vivem aqui”. O jovem negro Jordan Kakre, de 25 anos, sentado próximo a ela na praça, fez a mesma queixa: “É difícil circular”.
Em Aubervilliers, a maioria das pessoas nas ruas também são negras, árabes e muçulmanas. Prédios que lembram conjuntos habitacionais são comuns. Caminhando ao lado do canal de Saint-Denis, até barracos de madeira são encontrados.
O bairro é bonito para os olhos de um brasileiro, mas a comuna tem fama de ser perigosa. Vários moradores contaram que recentemente uma granada foi detonada na região. Conforme relata o jornal local Le Parisien, três pessoas foram presas acusadas pela explosão que deixou um ciclista gravemente ferido no final de maio.
Durante as conversas no local, os moradores tentavam demonstrar que por ali nem tudo é ruim e se queixaram de que a mídia costuma retratar a região de forma negativa. Um deles foi o filho de imigrantes argelinos e marroquinos Ayoub Bendahmane, que vê as Olimpíadas como uma oportunidade de mostrar as coisas boas de Aubervilliers.
“Estou muito orgulhoso, é uma boa sensação saber que pessoas de vários países estão aqui […]. É bom ver isso em uma cidade como Aubervilliers, que não tem boa fama porque aqui acontecem coisas ruins às vezes — como em todo lugar. E aqui tem coisas positivas, estou orgulhoso que as Olimpíadas possam mostrar isso”, diz o estudante e funcionário público de 22 anos.
Uma impressão semelhante foi passada por um grupo de pessoas que deixava uma paróquia em frente à prefeitura local. “É uma coisa boa para a França e para a região de I’le de France [zona metropolitana de Paris], é um grande momento”, disse o músico e escritor Jean-Claude Jko, um homem negro de 58 anos, que brincou que fazer perguntas em inglês na França não é uma boa ideia: “É a língua do nosso inimigo”.