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Centenário de orgulho: a história de Alfredo Gomes, o primeiro atleta negro do Brasil nos Jogos Olímpicos

Neto de escravizados, o atleta participou da estreia da São Silvestre e é símbolo de pioneirismo no esporte
No Jogos Olímpicos de Paris (1924), Alfredo Gomes foi o porta-bandeira do Brasil na cerimônia de abertura realizada no Estádio Yves-du-Manoir.

Foto: Reprodução/ A Gazeta

11 de junho de 2024

Mesmo após 136 anos da abolição, o preconceito ainda persiste em diferentes camadas da sociedade brasileira. Na década de 1920, as barreiras eram ainda mais significativas para Alfredo Gomes, que se destacou como um dos melhores atletas do mundo. Seu lugar na história é inquestionável, considerado pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB) como o primeiro atleta negro do país a participar dos Jogos Olímpicos. Ele também foi porta-bandeira do Brasil no Estádio Olímpico Yves-du-Manoir.

Embora Alfredo Gomes não tenha alcançado seus melhores resultados nos Jogos Olímpicos, sua história é marcada por uma vida dedicada ao esporte. Ele colecionou medalhas e se tornou o primeiro vencedor da tradicional prova de atletismo brasileiro, a São Silvestre, na qual participou por 30 edições e passou a faixa para os sucessores no topo do pódio.

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O pioneirismo de Alfredo Gomes deve ser lembrado e celebrado, especialmente pela forma como abriu caminhos para os atletas negros pouco mais de 30 anos após a abolição da escravatura. Sua história é um testemunho da luta contra o preconceito e da importância da diversidade e inclusão no esporte.

De neto de escravizados a atleta

Alfredo Gomes nasceu em 16 de janeiro de 1899, em Areias, no Vale do Paraíba. Neto de escravizados, o atleta representava esse passado sombrio. Em 1914, ele se mudou com a família para São Paulo, local em que se dedicou aos estudos e começou a trabalhar na Companhia Telefônica Brasileira (CTB), empresa em que permaneceu por cinco décadas.

Em São Paulo, Alfredo Gomes descobriu sua paixão pelo futebol, que estava se popularizando na década de 1910. No entanto, foi no atletismo que ele encontrou seu verdadeiro talento. A entrada de Gomes na modalidade aconteceu por acaso, em 1919, quando ele participou de uma competição realizada pelo Colégio São Luiz em um piquenique na represa de Guarapiranga. Ele não apenas participou, como também venceu a prova, o que o motivou a se dedicar ao atletismo.

“Aquela vitória foi o estopim que inflamou todo meu entusiasmo pelo atletismo”, disse Alfredo Gomes, em declaração registrada no “Grande Livro do Atletismo Brasileiro”, de José Clemente Gonçalves e Elisabeth Clara Müller. A partir de então, Gomes passou a marcar presença nos principais eventos do atletismo paulista.

No início, Alfredo Gomes encontrou dificuldades. Ele competiu na Corrida Estadinho, posteriormente denominada como Volta de São Paulo, e obteve um resultado modesto, terminando em 19º lugar. Os equipamentos inadequados, como roupas e calçados pesados, não permitiam o melhor desempenho. Segundo registros da imprensa, Gomes chegou a correr com chuteiras de futebol rudimentares. No entanto, com a prática, seu talento para as corridas falou mais alto.

Primeiros recordes 

A carreira de Alfredo Gomes alcançou um novo patamar em 1921. O atleta paulista começou a conquistar resultados impressionantes, estabelecendo o recorde nacional na Prova da Hora, que mede a distância percorrida em 60 minutos. Além disso, Gomes também se destacou na primeira maratona realizada no Brasil, com a distância olímpica, conquistando o segundo lugar.

No mesmo ano, Gomes se juntou ao Esperia, um clube ligado à comunidade italiana em São Paulo, que defenderia ao longo de sua vida. A revista mensal do Club Esperia descreveu Gomes, em 1930, como um verdadeiro esportista, possuidor de uma rara educação esportiva, leal e respeitoso com seus adversários.

Em 1922, Gomes participou dos Jogos Latino-Americanos, realizados no Rio de Janeiro como parte das comemorações do centenário da Independência do Brasil. O atleta se destacou no atletismo, conquistando vitórias e pódios em diferentes provas de longa distância, como os 1500m, 5000m, 10000m e 10000m cross-country. Nessa época, Gomes ganhou o apelido de “Homem Elástico” da imprensa paulista, devido à sua impressionante flexibilidade e resistência.

Único negro

Alfredo Gomes, um inspetor da Companhia Telefônica, treinava à noite no Esperia, após seu expediente. Durante a década de 1920, ele se tornou uma estrela do atletismo no Brasil, figurando no ranking de recordes nacionais em várias provas, incluindo os 800m, 1500m, 5000m e 10000m. Além disso, era especialista em provas “rústicas”, como o cross-country.

Quando os Jogos Olímpicos de Paris 1924 surgiram no horizonte, Alfredo Gomes se preparou para participar. Ele venceu as provas classificatórias e garantiu sua presença na delegação brasileira, que era quase exclusivamente formada por atletas brancos. O time era treinado pelo americano A. J. Hogarty, autor do livro “Manual do Atletismo”. Alfredo Gomes era o único negro do grupo e o primeiro do Brasil nos Jogos Olímpicos, após a estreia do país em Antuérpia 1920.

A delegação do Brasil em Paris 1924; Alfredo Gomes é o primeiro à esquerda | Créditos: Reprodução/Centro de Memória do Esporte (UFRGS)

A jornada até Paris 1924 foi difícil. O financiamento da viagem dependia de uma campanha pública de arrecadação, liderada pelo jornal O Estado de S. Paulo. Diferentes associações esportivas locais fizeram doações, assim como a Câmara Municipal de São Paulo. Em 27 de maio de 1924, o grupo de dez atletas deixou São Paulo e embarcou no navio Orânia, em Santos, para uma viagem transatlântica de cerca de 30 dias.

A participação de Alfredo Gomes gerava expectativas. A imprensa sul-americana e francesa o considerava um favorito no cross-country. O próprio Alfredo Gomes confiava em seu potencial e afirmou que poderia vencer em todas as provas, inclusive no cross-country, onde esperava dar trabalho ao lendário Paavo Nurmi, conhecido como o “Finlandês Voador”.

Alfredo Gomes estava inscrito em cinco provas, mas não participou de três delas. Seu melhor resultado foi nos 5000m, onde alcançou a nona colocação em sua bateria semifinal. No cross-country, Gomes não conseguiu terminar a prova devido ao calor e à fumaça pesada de uma usina próxima ao percurso. 

Em entrevista posterior, ele atribuiu sua desistência à perda de peso durante a viagem, doença e clima abafado. Apesar dos obstáculos, Gomes considerou que aprendeu muito com a experiência e que seu sacrifício foi recompensado.

O campeão da São Silvestre

Alfredo Gomes, um dos mais destacados fundistas brasileiros, manteve sua fama após os Jogos Olímpicos de Paris em 1924. Embora não tenha tido a oportunidade de participar novamente dos Jogos Olímpicos, Gomes conquistou títulos nacionais nos 5000m e 10000m ao longo da década de 1920.

No entanto, o ponto alto de sua carreira foi a vitória na primeira edição da tradicional prova de São Silvestre, em 1926. Inspirada em uma corrida noturna de Paris, a São Silvestre foi idealizada pelo jornalista Cásper Líbero, de A Gazeta. Na meia-noite de 1º de janeiro de 1926, cerca de 60 corredores participaram da prova, que percorreu 6,2 km da Avenida Paulista até a Praça dos Esportes, na Ponte Grande. Gomes liderou o pelotão desde o início e cruzou a linha de chegada em primeiro lugar, com um tempo de 23 minutos, 19 segundos e quatro quintos.

A vitória de Gomes foi descrita pelo jornal A Gazeta como “um triunfo merecido e que coroou os esforços do simpático atleta, recordista nacional”. Em entrevista, Gomes disse que venceu “sem muito trabalho” e que “chegou descansado”, acrescentando que à noite parece que “o organismo se sente mais forte”.

Gomes desenvolveu um amor pela São Silvestre, participando da prova por muitos anos. Embora não tenha conquistado novamente o título, ele terminou em segundo lugar três vezes. Mesmo após sair da elite do esporte, Gomes continuou participando da São Silvestre, até os 54 anos. Sua despedida foi em uma ocasião marcante: na 30ª edição da prova, quando também era comemorado o quarto centenário da cidade de São Paulo.

Orgulho do esporte

Alfredo Gomes manteve sua paixão pelo esporte ao longo de sua vida. Como um dos pioneiros do atletismo brasileiro, ele continuou a se envolver em diversas atividades esportivas, desde a organização de provas até o treinamento de jovens atletas. Além disso, ele também auxiliava árbitros e cronometrava corridas, demonstrando sua dedicação ao esporte.

Gomes também foi ligado à associação de veteranos e ocupou o cargo de diretor de atletismo no Guarany do Tatuapé, um clube localizado perto de sua casa na zona leste de São Paulo. Ele não abandonou seu amor pelo futebol, frequentando partidas amadoras na capital.

Mesmo quando já estava em idade mais avançada, Gomes continuou a correr nas pistas do Esperia. Infelizmente, foi após um treino, quando corria 2 km numa manhã de domingo, que ele faleceu, em 17 de março de 1964. Ele foi sepultado no Mausoléu dos Esportistas, que ele mesmo ajudou a criar.

Um detalhe simbólico é que as alianças de seu casamento com Camila Gomes foram feitas a partir do ouro de uma de suas medalhas, conquistada na Europa após os Jogos Olímpicos. Gomes deixou quatro filhos e netos, que herdaram sua história e legado. Até hoje, seu nome é lembrado como um dos pioneiros negros do esporte brasileiro, e ele é homenageado com um logradouro em uma praça perto do Estádio do Morumbi.

  • Caroline Nunes

    Jornalista, pós-graduada em Linguística, com MBA em Comunicação e Marketing. Candomblecista, membro da diretoria de ONG que protege mulheres caiçaras, escreve sobre violência de gênero, religiões de matriz africana e comportamento.

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