Saint-Denis – Nada vem do nada. A Alma Preta certamente não veio do nada. Muito menos uma credencial de repórter para o skate e uma de fotógrafo no atletismo olímpico. Chegar até aqui é um acúmulo de pessoas e conhecimentos. Da mesma maneira que uma medalha olímpica também é.
Sempre gostei de esportes. Como muitos meninos brasileiros, o futebol foi minha porta de entrada. Joguei basquete, handebol e lembro de ficar orgulhoso por ter sido o quarto colocado em uma competição de corrida na escola, que de tempos em tempos promovia uma gincana de atletismo.
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Mais feliz ainda quando ganhei uma das primeiras medalhas da minha vida, uma de ouro, na corrida de revezamento. Tenho foto e tudo até hoje.
Na adolescência, as coisas ficaram mais complexas. O racismo, que era mais esporádico e implícito, virou algo cotidiano pra mim. Na época, o debate racial no Brasil era outro. Poucas pessoas sabiam a respeito ou ligavam pra isso. Não tive amparo. Apenas uma coisa restou: o esporte.
Nadei, nadei e nadei, chutei todas as bolas que eu pude, corri, gritei gol sempre que possível, até um pouco de skate eu aprendi, só pra esquecer aquele inferno. Não fosse isso, existiria Vinicius agora?
O esporte era tão presente e crucial na minha vida, que cogitei trabalhar com isso. Essa foi uma das razões pela qual escolhi cursar jornalismo. Eu adorava praticar esportes, mas não era o melhor em nada. Me restou falar. Dito e feito, fui parar no curso da Universidade Estadual Paulista (UNESP), em Bauru (SP).
Na época, quando achei que ia engrenar, entrei em certa crise com o jornalismo esportivo conforme a experiência na universidade foi avançando. Algo mais forte me chamou. Conheci a ideia de direitos humanos e a tradição da luta antirracista em profundidade.
A última ocasião em que me envolvi com o esporte diretamente como jornalista foram as coberturas do futebol amador de Bauru para um site local e um TCC do mesmo tema, executado com grande amigo.
Também tive a influência de professores raros ali, que me deram ferramentas e possibilidades de entender as desigualdades que atravessavam a mim e o mundo.
Entre meus colegas de faculdade, conheci boas pessoas, gente com as mesmas inquietações. E com eles nasceu a Alma Preta. Algo que certamente mudou o curso da minha vida para sempre. Costumo dizer que “era pra ser só um blog, pra reclamar um pouco”. Virou muito mais que isso.
No começo, os quatro fundadores faziam reuniões em mesas improvisadas e banquinhos de plástico no fundo de uma república. Hoje, temos credenciais oficiais para as Olimpíadas de Paris. Nada vem do nada.
Da Zona Leste de SP a Saint-Denis é um pulo
Depois de formado, esqueci de vez o esporte no aspecto profissional. Entre idas e vindas, especialmente após o fatídico dia, fiquei um tempo até sem assistir algumas coisas. Mantive a prática como podia para cuidar da mente e só. Fiz um trabalho ou outro ligado ao tema, mas não pensava mais em ser jornalista de esportes.
A manhã da última sexta-feira (2) me lembrou de tudo isso. Estive no Stade de France para fotografar o atletismo olímpico, pela Alma Preta. Estar aqui também me lembrou que o esporte não está isolado da sociedade e que a melhor maneira de falar sobre isso, para além dos méritos e resultados, é contextualizar seu significado.
Por exemplo, o Stade de France impressiona pelo tamanho. Abriga 80 mil pessoas e está localizado em Saint-Denis*. Foi construído especialmente para a Copa do Mundo de 1998. Sim, aquela mesma que consagrou Zidane com dois gols na final contra o Brasil — e possivelmente consolidou meu primeiro trauma esportivo.
O local já recebeu final de Eurocopa, finais da Liga dos Campeões da Europa e finais da Copa do Mundo de Rugby. Além disso, foi um dos alvos nos atentados de 2015 que atigiram várias localidades de Paris e da região metropolitana.
E é curioso pensar que a região guarda algumas semelhanças com o território em que a sede da Alma Preta está localizada na Zona Leste de São Paulo. Ambos receberam estádios novos para a Copa do Mundo e estão em áreas periféricas de grandes cidades. Nas duas localidades, a população trabalhadora é maioria.
Há uma presença maior da pele escura. Em Saint-Denis, há diversos imigrantes negros e arábes e seus decendentes, ainda que o governo francês não formule dados oficiais sobre isso. Em Itaquera e Artur Alvim, pretos e pardos são 45,7% e 37,7% da região, respectivamente.
Nas duas áreas, há uma expectativa para entender o quanto os estádios trouxeram melhorias para a população local ou gentrificaram os espaços. Em São Paulo, a Arena Corinthians ocupou um grande terreno descampado. Os prédios ali eram simples.
Hoje, a cada ano, novos e novos prédios são erguidos. É possível ouvir de alguns moradores mais antigos na região que o aluguel e o m² do território ficaram mais caros desde a Copa do Mundo de 2014. Até um shopping foi feito, dando indícios que o modelo de desenvolvimento habitual de São Paulo segue forte: moderniza-se o espaço, os preços sobem e os mais pobres saem e são empurrados para mais longe.
Em Saint-Denis, o Stade de France substituiu os gasômetros da Gaz de France**. A região era um complexo industrial, que já abrigava o cruzamento de rodovias e linhas de trem. Diferente dos registros históricos, ao caminhar da estação até o estádio passei por prédios comerciais modernos, equipados com todo tipo de transporte e serviços e a área parecia bem distante das descrições anteriores a 1998.
Ainda não ficou claro para mim, enquanto jornalista, se o estádio ajudou ou não a região. Mas é possível afirmar que de fato houve uma transformação. Assim como me pergunto toda vez que vou ao escritório da Alma Preta, não pude deixar de me perguntar em Saint-Denis: para onde estão indo os mais pobres?
Novos capítulos, novas histórias
Ainda assim, o início das competições de atletismo no Stade de France é uma chance de escrever novas — boas — histórias, para muita gente. Para o território, para os atletas, para os torcedores e para nós, da Alma Preta.
Da minha parte, fui fotografar um novo capítulo ali. A entrada para o público e jornalistas estava tranquila, sem lotações ou filas. Mesmo assim, dei algumas voltas até achar o acesso para mídia credenciada.
No geral, as instruções para a imprensa nos Jogos são um pouco confusas, alguns jornalistas e fotógrafos têm reclamado bastante dos desencontros. É difícil achar os espaços alocados para os profissionais de comunicação e é comum ouvir informações contraditórias.
Resolvi que seria melhor pedir ajuda aos colegas de profissão. Na primeira tentativa, com uma fotógrafa da Libéria, não consegui muita coisa. Ela estava tão perdida quanto eu e saímos andando juntos para encontrar os espaços destinados a fotografia. De dentro dos corredores do estádio já era possível ouvir a reação da torcida às primeiras façanhas do dia.
Com o tempo correndo e com medo de perder as competições, recorremos a um fotógrafo estadunidense, bem mais velho que a gente, que indicou o local correto para cada um. Nos separamos e desci para uma das zonas permitidas aos fotógrafos. A competição de salto em altura já tinha começado.
O estádio está lindo. O roxo é a cor predominante da linguagem visual de Paris-2024 e da pista de atletismo. Apenas o verde do gramado ao centro destoa. As cores principais se articulavam muito bem com a diversidade de tons dos milhares de torcedores presentes.
Do meu lado, havia gente de todo canto, falando vários idiomas. Quase todos usando coletes cinzas, obrigatórios para adentrar às posições de fotógrafo no local. A maior parte dos fotógrafos era branca e masculina. Alguns fotógrafos negros e asiátiacos aqui e acolá também estavam lá, mas em minoria. Não notei outros brasileiros comigo. Alguns deles eram bem velhos, cabelos brancos e tudo.
Todos representavam agências de notícias, confederações e comitês olímpicos ao redor do mundo, gente parruda, com equipamento parrudo, lentes que eu sequer manuseei na vida e só via na vitrine das lojas.
Sendo sincero, de início, não sabia muito bem o que fazer. O filme todo que eu relato no começo deste texto passou pela minha cabeça de novo. Quase chorei. Mandei foto de onde eu estava pra minha família inteira. Eles estavam lá comigo. Meus antepassados estavam lá comigo. Lembrei da minha falecida avó Helena, que vivia dizendo que um dia eu “levaria ela para o exterior, pra ela arrumar um gringo”. Ela estava lá comigo.
Jamais imaginaria que cobriria uma Olimpíada. Não pensava isso nem quando queria ser jornalista esportivo. Sonhava com isso, mas não parecia possível. Soava muito distante para alguém como eu.
Mais improvável ainda é que algo assim poderia acontecer representando a Alma Preta. Havia muito mais gente comigo ali. Há dezenas de pessoas trabalhando neste projeto. Pessoas comprometidas em entregar o melhor possível da nossa perspectiva em um espaço em que sempre fomos poucos. Ao lembrar disso, passei a fotografar loucamente.
Entre os acertos e erros — meus e das atletas — fui admirando a competição e me empolgando com o estádio lotado. Havia ao menos outras quatro modalidades acontecendo ao mesmo tempo: decatlo masculino, arremesso de martelo masculino, 1500m masculino e 100m rasos feminino. Mas naquele momento apenas o salto em altura importava.
Lutei bastante para acertar o momento certo e me posicionar adequadamente para registrar tudo. É realmente difícil capturar o alto rendimento do corpo humano. Os movimentos são rápidos, fortes, e a distância entre um clique e outro, entre focar ou desfocar uma cena, determina o sucesso da imagem que você vai fazer.
A bateria contava com muitas saltadoras negras, de diversas nacionalidades. Entre elas, Rachel Glenn (EUA), Rose Amoanimaa Yeboah (Gana), Buse Savaskan (Turquia), Temitope Simbiat Adeshina (Nigéria), Vashti Cunningham (EUA) e Distin Lamara (Jamaica).
Em uma manhã de ineditismos, fiquei feliz por testemunhar e registrar Valdileia Martins igualar o recorde brasileiro na modalidade. A última a alcançar a marca de 1,92m foi Orlane Maria dos Santos, em 1989. O feito também é importante pois traz o Brasil de volta a uma final olímpica pela primeira vez em 56 anos.
A última mulher brasileira a disputar uma decisão do salto em altura foi Maria Cipriano (México, 1968). Antes dela apenas Aída dos Santos (Tóquio, 1964) tinha ido à final.
Ainda sobrou tempo para registrar um pouco da 1ª rodada dos 100m rasos feminino. Pelo Brasil, Vitória Rosa e Ana Carolina Azevedo correram o quanto puderam, mas não avançaram às semifinais da modalidade.
Suei mais um pouco para registrar tudo, entre as idas e vindas do sol, a velocidade impressionante das atletas e o curto tempo, cerca de 10s, para fazer imagens em cada bateria. A linha de chegada de uma corrida de 100m é insana. É tudo definido em milimetros. Perguntei-me quantos cliques podia fazer entre um segundo e outro.
Ainda tive a honra de ver a jamaicana Shelly-Ann Fraser-Pryce, uma lenda do esporte. Ela é detentora de oito medalhas olímpicas, sendo três de ouro. Paris 2024 será sua última apariçao olímpica. Quantas mulheres ao redor do mundo não estão correndo neste exato momento por causa dela?
Sobre mim e a Alma Preta, em nossa primeira aparição olímpica, seguimos sonhando em quantos mais levaremos a esse momento e quantas outras Olimpíadas poderemos ver de perto. Quero que o trabalho que fazemos aqui em Paris motive mais jornalistas e fotógrafos negros brasileiros para ver o maior evento esportivo do mundo. Que eles tragam suas famílias, suas comunidades e suas ancestralidades. Que todos deixem claro que nada vem do nada.
*Saint-Denis: comuna da região metropolitana de Paris
**Gaz de France: foi uma produtora e distribuidora francesa de gás natural