Desde o início da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), apenas 19 comunidades quilombolas que integram a região da Amazônia Legal foram devidamente tituladas. Segundo informações coletadas no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), ainda existem cerca de 1.796 processos em aberto em todo o Brasil, que são quilombos à espera da titulação oficial de suas terras. Do total, 600 fazem parte da Amazônia Legal.
Nos primeiros dois mandatos do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 66 territórios quilombolas da Amazônia Legal foram titulados. No governo Dilma Rousseff, até 2016, 37. A região, com mais de 1.200 comunidades, é dividida em duas partes: a Amazônia Ocidental, composta pelos Estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima, e a Amazônia Oriental, composta, por exclusão, pelos Estados do Pará, Maranhão, Amapá, Tocantins e Mato Grosso.
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Maranhão é o estado com maior número de processos em aberto, contabilizando 398 comunidades quilombolas que aguardam titulação, seguido do Pará (67), Mato Grosso (58), Amapá (34), Tocantins (33), Rondônia (7), Amazonas (3).
Magno Nascimento, liderança quilombola do Pará e Doutorando em Antropologia e Sociologia, comenta que não se lembra de titulação efetivada pelo governo Bolsonaro na região da Amazônia Paraense.
“Não tivemos diálogo com o governo. A conversa mais difícil foi com a Fundação Palmares, que deveria abrir as portas para os processos dos quilombolas, mas a própria instituição não conseguiu implicar intitulações. Para nós, foi um governo de puro retrocesso”, completa a liderança.
Processo de titulação de terras
Primeiramente, para alcançar a titulação é necessário acionar o Incra ou a Fundação Cultural Palmares (FCP). Trata-se da abertura do processo administrativo devidamente autuado, protocolado e numerado. O processo poderá ser iniciado a requerimento de qualquer interessado, das entidades ou associações representativas de quilombolas.
Depois dessa etapa, elabora-se um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), que é um documento técnico produzido por uma equipe multidisciplinar do Incra. Sua finalidade é identificar e delimitar o território quilombola reivindicado pelos remanescentes das comunidades dos quilombos. O RTID aborda informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas, socioeconômicas, históricas e antropológicas, obtidas em campo e junto a instituições públicas e privadas.
Após a sua conclusão, o documento deve ser aprovado pelo Comitê de Decisão Regional – CDR – e ser publicado na forma de Edital, por duas vezes consecutivas nos Diários Oficiais da União e do Estado, assim como afixado em mural da Prefeitura. Na atualidade existem 307 Editais de RTIDs publicados sobre a região da Amazônia Legal, totalizando 2.392.483,0905 hectares em benefício de 36.441 famílias quilombolas.
Outro ponto importante é o Decreto de Desapropriação por Interesse Social. Segundo informações, na Amazônia Legal existem 89 Decretos publicados, desapropriando 586.407.657,1 pessoas que moram indevidamente em territórios de quilombos em benefício de 10.570 famílias quilombolas.
O Incra ainda informa que a emissão de títulos é a última etapa na regularização fundiária de um quilombo, e ocorre após os procedimentos de desintrusão do território. O título é coletivo, pró-indiviso e em nome das associações que legalmente representam as comunidades quilombolas.
Atualmente, existem 314 títulos emitidos, regularizando 1.083.617,9165 hectares (0,125 % do território brasileiro) em benefício de 205 territórios, 355 comunidades e 20.706 famílias quilombolas da região.
A liderança paraense comenta que na prática a titulação é importante pois a mesma garante a manutenção das áreas verdes da Amazônia Legal. Ele ainda reforça que o território não titulado, se torna uma região de muita fragilidade. “O território quilombola, por exemplo, não consegue ter auxílio jurídico para manutenção do mesmo. Tanto que o próprio governo, em territórios não titulados, acabou autorizando obras de grande impacto e projetos de monocultura de palma e soja, além do avanço da mineração”, completa ele.
Conflitos
Não é só a titulação de terras que representam uma falha no governo bolsonarista a respeito dos direitos e segurança de comunidades tradicionais: conflitos por território e medo também marcam o período de 2019 até o final de 2022. É o que diz Maria do Socorro Costa da Silva, presidenta da Associação de Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama), no município de Barcarena, no nordeste do Pará.
“O conflito tem sido grandioso. O conflito para nós é a falta de documento. Nós estamos disputando nosso território para morar, com as invasões e invasões dentro de nossas áreas. Mas o que é do meu povo é intocável. Não posso negar ao meu povo, o povo da floresta que é a nossa origem”, salienta.
Maria do Socorro explica que é um sistema político unido contra os direitos quilombolas, e que as ameaças contra ela e as demais famílias só aumentam a cada dia, em especial, devido às ocupações irregulares.
“Sou ameaçada por defender nosso chão, o território do meu povo. O governo federal é responsável, o governo municipal e estadual são responsáveis por um impacto tão grande na nossa vida e na nossa documentação. Precisamos da regularização fundiária porque nós temos o nosso certificado e uma sentença que diz que nós temos direito de viver de nossas terras”, destaca.
“No outro governo [PT] nós continuamos reclamando e não fomos ouvidos. Será que agora isso vai mudar? Eu não quero expectativas, eu quero reconhecimento dos quilombos. Eu quero um título do quilombo. Eu espero que já comece a regularização fundiária do Burajuba, das outras comunidades que estão em caso de extrema urgência. Que dê o nosso título. Porque já tem um memorial descritivo dizendo a nossa metragem. Já tem uma sentença, já tem um certificado, já tem um laudo antropológico. Não dá mais para perder tempo”, finaliza a quilombola.
A reportagem especial faz parte do projeto Amazônia Negra, Quilombolas e Pessoas Apagadas pela História, uma parceria das mídias independentes Amazônia Real e Alma Preta com apoio do Programa de Apoio ao Jornalismo (PAJor), da Repórteres Sem Fronteiras.
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