Em meio ao cenário político masculino e branco, uma voz negra e afinada se posiciona pela diversidade
Texto e imagem / Vinicius Martins
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Dos 1059 deputados e deputadas estaduais eleitos no Brasil em 2014, apenas 279, ou 26% do total, se autodeclaram negros. Apesar da população negra brasileira corresponder a 53% de todos os habitantes, as assembleias estaduais legislativas do país são um dos vários reflexos da baixa representatividade afro-brasileira nos espaços de poder político do país.
No Estado de São Paulo, Leci Brandão da Silva, 73 anos, (PCdoB-SP) é um exemplo fora da curva dentro da política brasileira, composta majoritariamente por homens brancos. Mulher negra, de origem humilde, Leci ocupa atualmente uma das 94 cadeiras de deputada estadual na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP).
“Eu não fiz direito, eu não fiz nada, eu não tenho curso de coisa alguma universitário, eu não tenho curso superior e estou aqui nesse mundo de São Paulo, na Assembleia Legislativa, com um povo bem conservador”, afirma.
A deputada atua em temas ligados à igualdade racial, inclusão social e às políticas culturais, sociais e educativas, sendo uma das poucas a levar adiante temáticas progressistas na assembleia paulista.
“A população aqui branca é que manda mesmo aqui dentro da casa e a gente fica aí no meio desse bolo, mas estamos avançando”, afirma.
Ela considera que seu mandato a um quilombo e como um dos poucos a compreender a diversidade social dentro da ALESP. Além de discutir o contexto da população negra em São Paulo, ela se dedica a temas ligados às questões de gênero, LGBTs e indígenas.
“Esse mandato aqui é um quilombo, o quilombo da diversidade. Aqui tem todo tipo de gente, vem todo o tipo de gente, e eu tenho uma coisa assim louca na minha cabeça, eu fico perguntando pra Deus ‘por que é que eu estou aqui?’”, reflete.
Sua trajetória política é recente e começou apenas em 2010, quando filiou-se ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB-SP). No mesmo ano, foi eleita para o seu primeiro mandato como deputada estadual em São Paulo.
Foi apenas a segunda mulher negra a ocupar uma cadeira na ALESP. Antes dela, em 1974, Theodosina Rosário Ribeiro tinha sido a primeira e única negra a ter um mandato legislativo no estado.
Mas, muito antes de se tornar uma figura política conhecida, Leci Brandão já havia conquistado a fama e o reconhecimento popular. Em mais de 41 anos de carreira como cantora e compositora, ela deu vida a sambas memoráveis, e narrou parte do cotidiano afro-brasileiro em suas letras.
Da Vila Isabel para o mundo
Sua história começa no Rio de Janeiro, em Madureira, local de seu nascimento. Foi criada no bairro de Vila Isabel, um dos berços do samba carioca. Leci lembra da origem humilde e das dificuldades da sua família quando ainda era criança.
“A minha mãe era zeladora da escola e nós morávamos na escola por questão de necessidade, porque nós não tínhamos condição de pagar aluguel”, afirma.
Mesmo pequena, a jovem ajudava a mãe no trabalho diário da escola e nas tarefas familiares. Entre o trabalho com a mãe e os estudo, Leci herdou dos pais desde cedo o gosto por música, especificamente o samba.
Os discos de 78 rotações sempre estavam tocando na vitrola de seu pai, desde clássicos nacionais como Jamelão, Carmén Costa, Dolores Duran, Dalva de Oliveira, ngela Maria, Elizete Cardoso, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Jacó do Bandolim, Valdir Azevedo até referências da música norte-americana como Louis Armstrong, Doris Day, Peter York, Harry James.
“Dia de domingo, normalmente, o que é que a gente comia? Galinha com macarrão, a comida dos pobres. A galinha era uma coisa especialíssima do almoço de domingo e sempre tinha música, sempre se tocou”.
As confraternizações de domingo eram sempre acompanhadas de muitas visitas e muita alegria das músicas e das danças entre amigos e familiares.
A vida começou a mudar em 1964, quando perdeu seu pai vítima de um Acidente Vascular Cerebral (AVC) ainda muito nova. Leci tinha 19 anos e para ajudar suprir a ausência do pai financeiramente, teve de buscar trabalho para complementar a renda da família.
“Eu conheci o primeiro preconceito, assim, direto na minha vida, porque eu estudava no Colégio Pedro II, eu tinha um diplomazinho do ginásio, o diploma do Clássico, e eu fui procurar emprego, porque eu precisava ajudar a minha mãe na sua sobrevivência”, recorda.
A procura por emprego também apresentou um novo desafio em sua vida: o racismo. Entre as diversas tentativas, a jovem sempre era reprovada nos exames psicotécnicos. Leci não entendia o porque de sucessivas recusas. Apenas muito tempo depois foi capaz de compreender a situação.
“Haviam classificados na época que exigiam moça de boa aparência e eu botava uma roupa direitinha. Só que aquilo significava dizer que não podia ser negra. Eu só fui entender isso muitos anos depois”, explica.
Depois de muitas tentativas, Leci Brandão conseguiu seu primeiro emprego de carteira assinada em uma empresa de processamento de dados, em 1967.
“O irmão de uma amiga minha, branca, falou ‘vai ter uma vaga lá no meu trabalho’. Era uma empresa de processamento de dados. DataMec o nome desse lugar, no bairro de Fátima. ‘Se a Leci passar, pode garantir pra ela que aqui ela não vai ser reprovada no psicotécnico, eu já falei para o pessoal qual é a situação que rola’”, relembra.
Samba no pé e na cabeça
É nessa mesma época que a jovem Leci Brandão começa a descobrir seus talentos e habilidades na música. O gosto por compor poesias musicadas, mesmo sem tocar instrumentos musicais como o violão e o cavaquinho, veio por uma necessidade pessoal e sentimental.
“Fiz o primeiro samba. A partir daí, que eu me descobri compositora, eu começo a fazer letras, que na verdade era opiniões sobre o que acontecia à minha volta”, afirma.
O talento para a música a transformou na primeira mulher a integrar a ala de compositores da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, 1972. Passou um ano como “estagiária” na escola até conquistar o espaço entre o grupo de composição.
Pouco tempo depois, o destaque como cantora e compositora lhe rendeu um espaço fixo nas noitadas de samba das segundas-feiras do Teatro Opinião no Rio de Janeiro.
“E o que chamava a atenção do público, principalmente dos jornalistas, eram as minhas letras. Eles falavam ‘pô, como é que essa mina faz isso aí e tal’. Era sempre um espanto tudo”, explica.
Em 1973, suas músicas chamaram a atenção de um jornalista em especial: o crítico musical Sérgio Cabral. Ele convidou Leci Brandão para gravar o primeiro disco de sua carreira. Um ano depois, ela lança seu primeiro LP “A música de Donga” pela Discos Marcus Pereira.
“Existem músicas que eu fico me perguntando hoje como é que eu consegui fazer aquilo, como é que eu consegui fazer aquela letra, que são coisas, assim, um pouco contundentes, e eu fui informada que eu fazia música de protesto. Eu também não sabia disso, né?”, define.
Seus sambas narram a vida cotidiana da população negra e pobre nas favelas e os diferentes dilemas sociais que essas pessoas enfrentam. Seu posicionamento é marcante em mais de 40 anos de carreira e 33 discos lançados, mesmo no último CD, “Simples Assim”, divulgado neste ano de forma independente.
“Eu tenho 41 anos de carreira artística, fiz, agora, ano passado, 41 anos. E o que acontece? Todo mundo achava uma coisa curiosa o fato de eu ser uma menina negra, que não tinha a escolaridade superior, e que fazia letras, que todo mundo gostava”, afirma Leci Brandão.
O perfil de suas canções chamaram a atenção de diversos movimentos sociais e políticos. Durante os anos de carreira, foi chamada para se apresentar em diversos shows de partidos de esquerda do país, mesmo sem ter vínculo com qualquer legenda partidária.
Sua contribuição musical também lhe rendeu o cargo de conselheira da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), entre 2003 e 2008, no comando da ministra-chefe de Matilde Ribeiro, durante o primeiro governo Lula.
Genocídio e política
Seja através da música ou por meio da atuação política, Leci Brandão sempre manteve um posicionamento firme diante do racismo e das injustiças sociais. Para ela, discutir o racismo e combater o genocídio da população negra, são situações cotidianas em sua vida.
A violência policial e o alto índice de mortes provocadas pelo Estado são constantemente contestados no mandato de Leci Brandão. Segundo levantamento do SPTV, realizado em 2016, estima-se que em 2015, cerca de um quarto dos assassinatos ocorridos na capital paulista foram efetuados pela Polícia Militar (PM) e que 72% das vítimas eram pretas ou pardas.
“Existem altas patentes na polícia, que recomendam para os seus comandados que homem preto ou pardo, em princípio, é suspeito, então, a polícia tem esse olhar. Eles são ensinados a olhar os negros de forma diferente”, reflete Leci Brandão.
A deputada também cita como exemplo a declaração do novo comandante da ROTA, o tenente-coronel Ricardo Augusto Nascimento de Mello Araújo, que afirmou na semana de sua nomeação que as abordagens policiais devem ser diferentes nos Jardins, bairro nobre de SP, de maioria branca, e nas periferias, bairros de maioria negra.
Para ela, a juventude negra de São Paulo busca respeito, reconhecimento e melhores condições de vida no Estado:
“Isso é uma coisa muito grave, porque a juventude negra, pelo menos a que eu tenho contato, ela tem lutado bastante para ser respeitada, para ter espaço, para ter acesso, para que não haja discriminação nas coisas que eles constroem”.
As desigualdades sociais do país e na forma que a população afro-brasileira é tratada são as principais causas do genocídio nas ruas pela violência urbana, na visão de Leci Brandão.
Mais oportunidades nas universidades públicas, um melhor acesso à educação de qualidade e, consequentemente, a maior presença de negros e negras em posições de poder e destaque social podem ser ferramentas importantes para frear o genocídio.
“Por exemplo, você vê propaganda do dia do médico, você nunca vê um médico negro. Você vê às vezes um comercial falando de engenharia, ou até de vestibular, e você nunca vê ali o negro em destaque”.
Ela também ressalta a influência do tráfico de drogas na vida das populações mais pobres. A deputada avalia que diante da falta de oportunidades para os jovens negros, o tráfico torna-se um caminho real para suprir as necessidades da vida.
“Tem a questão da droga, que quer queira, quer não, isso é uma coisa que está acabando com o país, acabando com as famílias. A gente sabe que às vezes o menino ele nem é usuário, mas para ajudar a sobreviver, ele pode trabalhar para o tráfico, ele pode, de repente, ser um entregador lá das coisas todas, porque ele recebe um dinheiro para fazer isso”.
E completa: “e com esse dinheiro, ele compra comida para a casa dele também. É uma questão às vezes até de sobrevivência”.
Na sua avaliação, o tráfico de drogas reflete as assimetrias raciais do país. A prática não está restrita às periferias e comunidades mais pobres. No entanto, consequências como a violência, recaem sob os pobres e negros.
“Mas o pior é que quem compra, quem vai lá comprar o produto que eles estão vendendo é a classe média, entendeu? Na sua maioria é a classe média branca. Vai lá ou manda o motorista, manda o secretário ou a secretária, enfim, porque eu cansei de ver carros de último tipo lá, ao pé do morro. As pessoas vão lá para comprar o seu negócio e tal, tudo bem, sem saber que está destruindo outras pessoas, outras famílias”.
Leci Brandão finaliza em 2018 seu segundo mandato como deputada estadual em São Paulo. Em quase oito anos de atuação, ela buscou formas de combate ao genocídio e à violência policial, sempre pautando a discussão na Assembleia Legislativa.
“Primeiro é trazer a questão para dentro da casa. Denunciar, falar qual foi o policial, que corporação ele pertence, para que tenha punição. Tem que ir para a corregedoria, para saber quem é que está fazendo isso. Trazer audiência pública para cá, como nós fizemos, para que todo mundo possa se colocar, se expor, e tentar fazer com que haja uma sensibilidade da Secretaria de Segurança no sentido de não ficar promovendo essas coisas”.
Em 2018, com ou sem mandato, Leci Brandão continua a fazer aquilo que sempre fez na vida, seja por meio da música, ou da política, dialogar e lutar pelo direito da população negra, pobre e moradora das periferias de São Paulo.