De 2019 a 2021, 146 proposições legislativas com menção aos povos tradicionais, indígenas e quilombolas foram movimentadas na Câmara dos Deputados, das quais 46% (67) foram apresentadas na atual legislatura e 54% iniciadas entre 1991 e 2018. É o que diz o estudo ‘A produção legislativa do Congresso sobre povos tradicionais’, elaborado pelo Observatório do Legislativo Brasileiro. Do total analisado, apenas 11 proposições são de autoria do Senado. As demais foram apresentadas por deputados e deputadas federais e apenas quatro se tornaram leis.
O estudo mostra, no entanto, que o tema relativo aos direitos de povos indígenas e quilombolas não é exclusividade da esquerda. A doutora e mestre em Ciência Política, Débora Gershon, pondera, por exemplo, que a Fundação Palmares não tem papel formal no processo legislativo, mas a posição do seu presidente certamente tem peso nos debates feitos a respeito do assunto. Para ela, que também é pesquisadora do Observatório, a opinião de Camargo expressa a natureza da agenda governamental sobre o tema e serve como fonte na produção de políticas públicas para os quilombolas.
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A doutora pontua que “na atual legislatura, esse posicionamento também parece ter constituído incentivo para uma entrada mais propositiva de partidos da direita no debate sobre um tema que, nos últimos anos, tem caracterizado a agenda dos partidos da esquerda”, diz. “Um posicionamento hostil ao Movimento Negro e às demarcações de terras quilombolas por parte do presidente da Fundação tem, portanto, enorme potencial para movimentar a oposição”, ressalta.
Muitas proposições, poucas leis
A análise também mostra que apesar do grande volume de proposições tramitadas sobre os povos tradicionais, indígenas e quilombolas, poucas foram transformadas em lei. Além disso, houve arquivamento de 30 projetos e somente quatro se tornaram normas jurídicas. Débora, entretanto, ressalta que o quadro é semelhante em outros temas.
“É pequeno o número de proposições transformadas em lei comparativamente àquelas iniciadas. No que se refere especificamente às proposições sobre povos tradicionais, no entanto, é preciso que avancemos mais nas pesquisas para responder a essa pergunta e verificar se há diferenças notáveis com relação à tramitação do conjunto das demais proposições”, avalia a pesquisadora.
Ela aponta ainda que uma pesquisa nessa direção certamente levaria em conta ao menos duas hipóteses relacionadas. A primeira fala sobre o alto volume de proposições tramitadas, que têm relação com o tamanho da repercussão dos ataques ao meio ambiente e com as ameaças recentes aos povos tradicionais.
A segunda hipótese pontuada pela pesquisadora é a pandemia. Segundo ela, a situação levou a Câmara a privilegiar a aprovação de medidas mais gerais de enfrentamento à crise sanitária.
“A pandemia assumiu certa centralidade no debate sobre povos tradicionais na atual legislatura. As palavras ‘pandemia’ e ‘coronavírus’, por exemplo, têm destaque no conjunto de proposições que tramitaram de 2019 para cá, iniciadas efetivamente pelos atuais senadores e deputados federais”, destaca.
Partidos e polarização
Os partidos do campo da esquerda (PT, PSB e PSOL) são aqueles que reúnem o maior número de parlamentares autores de proposições voltadas aos povos tradicionais. Na legislatura atual, esses três partidos também foram os que mais se destacaram, seguidos pelo PDT e pela Rede, de acordo com o estudo.
“Quando, no entanto, dividimos a Câmara em dois conjuntos mais amplos de partidos, de centro-esquerda e centro-direita, notamos que 43% dos autores pertencem a partidos da centro-direita. Ou seja, o tema não é exclusivo da esquerda, sendo disputado por legendas ideologicamente distintas, o que pode sinalizar maior risco à flexibilização de direitos conquistados ao longo de mais de 30 anos de vida democrática no país”, salienta a análise.
A doutora Débora avalia que a polarização política no Congresso é elemento dificultador da aprovação de quaisquer proposições. “É exatamente por essa razão que há um esforço contínuo dos parlamentares e do governo de montagem de coalizões capazes de dar andamento a uma determinada agenda”, coloca a pesquisadora.
Importância de discutir sobre os povos tradicionais
“O debate político a respeito da situação dos povos tradicionais no Brasil é condição absolutamente indispensável para a produção de políticas públicas instituidoras e garantidoras de direitos para essas populações. A dívida histórica que o Brasil carrega com seus povos tradicionais não tem chance de ser compensada sem um papel ativo do Congresso Nacional”, ressalta Débora.
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A pesquisadora orienta ainda que os movimentos sociais devem continuar pressionando os parlamentares, principalmente nesta época de pré-eleições presidenciais. “É o momento é mais do que oportuno para que se faça um diagnóstico da atuação do atual Legislativo em pautas caras aos povos tradicionais. Isso ajuda na formação de opinião pública e na mobilização da sociedade civil a respeito do tema, bem como cria incentivos à inserção dessas pautas nas plataformas eleitorais que produzirão a próxima legislatura”, finaliza.
Este estudo foi produzido no âmbito do projeto ‘Ciências Sociais Articuladas’, que integra as iniciativas promovidas pela articulação entre a Associação Brasileira de Antropologia, Associação Brasileira de Ciência Política, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais e Sociedade Brasileira de Sociologia em defesa das Ciências Sociais brasileiras. E é desenvolvido em parceria com o Observatório do Legislativo Brasileiro.